BOEMIA E MÚSICA NO RIO E EM MINAS: UMA BREVE HISTÓRIA DE HENRIQUE BELTRÃO

08/07/2020 21:45

Introdução

 

Em meio a Serra da Mantiqueira, nas proximidades da divisa entre Minas, São Paulo e Rio de Janeiro, encontra-se uma pequena cidade, chamada Itanhandu. Emancipada em 1923, Itanhandu é terra de muitos artistas, de vários segmentos da cultura: ali nasceu, por exemplo, a atriz Vida Alves (1928-2017); e em Itanhandu, foi publicada, no final dos anos 1920, a revista Electrica, uma das divulgadoras da arte moderna naquele momento (o criador da revista foi o carioca Heitor Alves, pai de Vida Alves).

 

 

Localização de Itanhandu. FONTE: https://www.indoviajar.com.br/brasil/mg/itanhandu/como-chegar.htm

 

Dentre os artistas que viveram ou passaram por Itanhandu, este texto dará destaque ao compositor carioca Henrique Beltrão (1915-1949). Em uma visita de poucos dias ao município itanhanduense, na década de 1940, Henrique compôs uma música que seria, depois, adotada como o hino de Itanhandu. Vivendo no Rio de Janeiro, Henrique Beltrão tinha uma vida bastante ligada às noites da cidade, tendo atuado, por exemplo, em espetáculos ao lado de Ary Barroso.

No primeiro tópico, intitulado "Contextos familiares e históricos", será feito um breve panorama sobre a família de Henrique Beltrão e o contexto histórico do Rio de Janeiro nos anos de 1910 a 1940. O segundo tópico, com o título "Mas nunca o meu Brasil foi tão lindo como aqui", vai abordar a passagem de Henrique Beltrão por Itanhandu. No terceiro tópico, "Legado de Henrique Beltrão", se falará de sua morte e de duas das suas composições.

 

1. Contextos familiares e históricos

 

Henrique Aníbal Pena Beltrão nasceu em 20 de janeiro de 1915[1], no Rio de Janeiro. Seus pais eram Heitor da Nóbrega Beltrão (1889-1955) e Christina Pereira Beltrão. O pai de Henrique era jornalista e chegou a ser deputado federal (Folha de São Paulo, 2008). Além disso, Henrique era irmão de Hélio Marcos Pena Beltrão (1916-1997), que foi ministro do Planejamento, na década de 1960, durante o governo de Costa e Silva (Folha de São Paulo, 2008).

Nos anos de vida de Henrique, o Rio de Janeiro, assim como todo o Brasil, atravessava períodos de grandes transformações. Tendo vivido entre 1915 e 1949, Henrique testemunhou o final da Primeira República, o período Vargas e o início do período de democratização após a ditadura do Estado Novo. Para compreendermos um pouco a trajetória do Rio de Janeiro nas décadas de 1910 a 1940, podemos tomar as considerações de Marly Motta em seu livro "Rio, cidade-capital" (2004).

A autora destaca que, desde o século XIX, havia um projeto para mudança da capital brasileira (o que se concretizou em 1960, quando a capital foi transferida do Rio para Brasília), abordando impactos desta mudança sobre a "cidade maravilhosa" e acontecimentos que colocaram o Rio de Janeiro como vitrine do Brasil. Neste contexto, Motta fala das comemorações do centenário da Independência do Brasil (2004, pág. 31-35) e da centralização político-administrativa promovida por Getúlio Vargas (2004, pág. 35-39). Estes momentos da História carioca tiveram em comum o desejo de colocar em evidência "os sonhos e as aspirações da nação moderna que se queria ser" (pág. 35).

No campo cultural, especificamente na música, o Rio de Janeiro via, na década de 1930, um crescimento ainda maior do samba, graças, principalmente, ao músico e compositor Noel Rosa (Sabóia e Martini, 2016). Henrique Beltrão, nesta onda da popularização e de transformações do samba, compôs o samba-canção "Amendoim torradinho" (Xexéo, 2020), sobre o qual se abordará um pouco mais no terceiro tópico.

Além de compor, Henrique Beltrão acompanhava outros artistas em espetáculos pelo Rio de Janeiro. Cabral (2016) cita Henrique Beltrão como um dos artistas que participavam da revista teatral "Entra na faixa", criada por Ary Barroso e em cujas apresentações, em 1939, foi interpretada a música mais conhecida de Ary: "Aquarela do Brasil". Esta revista teatral, de acordo com Cabral, tinha Henrique Beltrão tocando violão elétrico. A edição de 06 de junho de 1940 do Jornal do Brasil (pág. 13) traz uma menção a Henrique Beltrão como integrante do espetáculo "Revista da Cinelândia", que sucedia o espetáculo principal, "Levadinha da Breca", comandado por Eva Todor.

 

Anúncio de espetáculos no Rio de Janeiro (Jornal do Brasil - 06 de junho de 1940), incluindo "Revista da Cinelândia", que contava com Henrique Beltrão entre os artistas.

 

Estas e outras apresentações faziam parte do cotidiano de Henrique Beltrão[2], envolvido com manifestações culturais em voga no Rio de Janeiro dos anos 1930 e 1940.

 

2. Mas nunca o meu Brasil foi tão lindo como aqui

 

O pai de Henrique Beltrão tinha amizades em Itanhandu, pequeno município sul-mineiro. Entre estas amizades, estava João Baptista Scarpa. Este era um homem influente na região, chegando até mesmo a hospedar o presidente Getúlio Vargas, por ocasião do aniversário do líder brasileiro (A NOITE, 1941). De acordo com Cunha (2020), João Baptista Scarpa sempre convidava amigos do Rio de Janeiro (incluindo a família de Henrique Beltrão) para participar das festas que arrecadavam fundos para construção do hospital de Itanhandu. Sobre isto, temos também o relato de Cândida Iracema Ovídio, ex-professora itanhanduense (Carneiro, 2020).

Segundo Cândida Ovídio, a família de Heitor Beltrão, pai de Henrique, passou alguns dias em Itanhandu para a festa em benefício do hospital itanhanduense. Na última noite da festa, Henrique Beltrão reuniu algumas pessoas em torno de uma das barracas e mostrou uma música que compusera em homenagem a Itanhandu. As pessoas que o ouviram gostaram de tal forma da música, que esta passou a ser apresentada em alguns eventos na cidade e logo estava no gosto popular, tornando-se, posteriormente, o hino de Itanhandu (e gravado pela cantora itanhanduense Ceumar Coelho). A letra da música diz:

 

Quem não passou no rio Verde de noitinha,

Não sabe como é bela Itanhandu.

Tem sombras debruçadas pela estrada enluarada.

Tem pomba, tico-tico e tem nhambu.

 

Quem não rezou junto ao altar-mor da capelinha,

Não sabe o que é pecar como eu pequei,

Olhando tanta moça bonitinha

E amando tanta gente como eu amei.

 

Mas nunca o meu Brasil foi tão lindo como aqui,

Aonde canta triste de manhã a juriti.

E onde a lua branca é como símbolo de paz,

Que vem abençoar Minas Gerais.

 

Ainda no relato de Cândida Ovídio, ela diz que "estava lançado o magnífico hino à nossa terra, cantado com amor pela nossa geração e pelas gerações que nos seguiram. Nunca mais o vimos. Morreu moço ainda".

 

3. Legado de Henrique Beltrão

 

O jovem compositor carioca "morreu moço ainda", conforme as palavras que encerraram o tópico anterior. O registro de óbito de Henrique Aníbal Pena Beltrão informa que ele morreu em 18 de janeiro de 1949, em razão de uma glomerulonefrite aguda. Segundo Bruna (sem data), esta doença é caracterizada por uma inflamação do glomérulo, uma das partes dos rins, podendo estar associada a infecções por vírus ou bactérias, outras doenças desenvolvidas pelo indivíduo, entre outros fatores.

Ruy Castro (2017, pág. 299-300), comentando sobre Henrique Beltrão, oferece um breve panorama de como foi sua curta vida e menciona sua morte. Segundo este autor, Henrique era formado em arquitetura, mas preferia a música e sempre se metia em problemas por flertar com mulheres casadas no Rio de Janeiro. Inclusive, conta-se que, em seu velório, apareceram nove "namoradas" (algumas delas eram casadas). Castro afirma que Beltrão morreu de cirrose, diferente do registro de óbito (que fala da glomerulonefrite). No entanto, ambas as doenças podem estar associadas, visto que há chances de serem desenvolvidas a partir da infecção pelo vírus da hepatite C (Lopes et al, 1999).

 

Registro de óbito de Henrique Beltrão

 

Xexéo (2020) afirma que, a respeito das composições de Henrique Beltrão, só se conhecem duas: o hino de Itanhandu e a canção "Amendoim torradinho". Sobre as primeiras gravações de "Amendoim torradinho", Ruy Castro afirma que o primeiro a gravar esta música foi Luiz Bonfá, em 1954, mas apenas com o som do violão. A primeira gravação vocal foi feita pela cantora Vera Lúcia, em 1955, seguida pela gravação feita por Sylvia Telles, no mesmo ano, e outros artistas do Rio de Janeiro. A letra de "Amendoim torradinho" diz:

 

Meu bem,

Esse teu corpo parece,

Do jeito que ele me aquece,

Um amendoim torradinho.

E a gente,

Nestes teus braços, esquece

Do ponteirinho que desce

Só pra impedir teu carinho.

 

Eu sinto uma vontade louca

De gritar pela rua

Que eu colei minha boca

Na boca que é tua

E de gritar ao teu ouvido,

Lá dentro, bem no fundo,

Que não há neste mundo

Um amor mais profundo

Que o amor bem vagabundo

Que vem lá do meu bem.

 

Quando Sylvia Telles gravou "Amendoim torradinho", o jornal Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, na edição de 29 de julho de 1955, fez uma reportagem sobre a artista e comentou sobre Henrique Beltrão, caracterizando-o como "poeta do colorido e do som... Amava nossa música... Seus poemas eram delicados, cariciosos". E, ao falar sobre a morte de Henrique, o jornal afirma que "não resistiu ao pesado tributo que as madrugadas insones cobram dos seus aficcionados".

 

Recorte do Jornal Correio da Manhã (Rio de Janeiro), edição de 29 de julho de 1955, que fala de Henrique Beltrão, compositor de "Amendoim torradinho".

 

Considerações finais

 

Henrique Beltrão, para a história de Itanhandu, está e continuará sempre marcado pela canção que compôs em homenagem a cidade e que se tornou seu hino. A música, até hoje, é bastante cantada em Itanhandu e é divulgada pelos artistas locais, em especial a cantora Ceumar Coelho.

Beltrão teve uma vida curta, porém intensa, movimentada pelas agitações das noites cariocas, que eram efervescentes nas décadas de 1930 e 1940, com artistas que, até os dias de hoje, fazem parte do cancioneiro popular do Brasil.

 

Referências bibliográficas:

A NOITE. Rio de Janeiro, ano 30, nº 10482, 18.abr.1941. Página 2. O presidente Getúlio Vargas passará o seu natalício em Itanhandú. Disponível em: <https://memoria.bn.br/DocReader/Hotpage/HotpageBN.aspx?bib=348970_04&pagfis=8322&url=https://memoria.bn.br/docreader> Acesso em 08.jul.2020.

 

BRUNA, Maria Helena Varella. Glomerulonefrite. Disponível em: <https://drauziovarella.uol.com.br/doencas-e-sintomas/glomerulonefrite/> Acesso em 07.jul.2020.

 

CABRAL, Sérgio. No tempo de Ary Barroso. Rio de Janeiro: Lazuli, 2016.

 

CARNEIRO, Renato. Relato de Cândida Iracema Ovídio sobre a passagem de Henrique Beltrão por Itanhandu. Whatsapp: Grupo Prosa e Verso. 07.jul.2020. 22:13. 1 mensagem de Whatsapp.

 

CASTRO, Ruy. A onda que se ergueu no mar. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. 2ª edição.

 

CORREIO DA MANHÃ. Rio de Janeiro, ano 55, nº 19123, 29.jul.1955. Sylvia Telles: Amendoim torradinho. Disponível em: <https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=089842_06&pasta=ano%20195&pesq=%22Henrique%20Beltr%C3%A3o%22&pagfis=50991> Acesso em 08.jul.2020.

 

CUNHA, Pedro. João Baptista Scarpa trazia amigos do Rio de Janeiro para as festas em benefício da Santa Casa, que começaram no final dos anos 30. Itanhandu, 08.jul.2020. In: SCARPA, Graphica. João Baptista Scarpa no canto esquerdo e o último a direita é Henrique Beltrão. Itanhandu, 06.set.2015. Facebook: personalidadesurbanashistoricasitanhandu. Disponível em: <https://www.facebook.com/groups/personalidadesurbanashistoricasitanhandu/permalink/1002876699762759/> Acesso em 08.jul.2020.

 

FOLHA DE SÃO PAULO. Hélio Marcos Penna Beltrão. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/folha/treinamento/hotsites/ai5/personas/helioBeltrao.html> Acesso em 07.jul.2020. Série "1968 - Ato Institucional nº 5 - Os personagens".

 

JORNAL DO BRASIL. Rio de Janeiro, ano 50, nº 131, 06.jun.1940. Página 13. Disponível em: <https://memoria.bn.br/pdf/030015/per030015_1940_00131.pdf> Acesso em 28.jun.2020.

 

LOPES, Lucila M. Valente et al. Glomerulonefrite associada à infecção pelo vírus da hepatite C. Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, nº 32(1), jan-fev.1999, pág. 1-6. Disponível em: <https://www.scielo.br/pdf/rsbmt/v32n1/0509.pdf> Acesso em 08.jul.2020.

 

MOTTA, Marly. Rio, cidade-capital. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.

 

RIO DE JANEIRO. Registro civil - Óbitos (nov.1948 - mar.1949). Disponível em: <https://www.familysearch.org/ark:/61903/3:1:S3HY-XCR3-5BC?i=187&cc=1582573&personaUrl=%2Fark%3A%2F61903%2F1%3A1%3A7QGD-G8PZ> Acesso em 07.jul.2020. Registro nº 49023.

 

SABÓIA, Gabriel; MARTINI, Paula. Na década de 1930, o samba conquista o rádio. Disponível em: <https://cbn.globoradio.globo.com/especiais/cem-anos-do-samba/2016/11/23/NA-DECADA-DE-1930-O-SAMBA-CONQUISTA-O-RADIO.htm> Acesso em 06.jul.2020. Publicado em 23.nov.2016.

 

XEXÉO, Artur. O vago simpático. O GLOBO, Rio de Janeiro, ano 95, nº 31737, 28.jun.2020. Segundo Caderno, página 6.



[1] Esta data foi obtida a partir das informações do registro de óbito de Henrique, no qual consta que ele faleceu em 18 de janeiro de 1949, aos 33 anos, 11 meses e 28 dias de idade.

[2] Há um Henrique Beltrão mencionado como apresentador de programas da Rádio Globo (Jornal Correio da Manhã, Rio de Janeiro, edições de 22 de maio e 20 de outubro de 1945), mas ainda não é possível ter certeza se é o mesmo Henrique Beltrão de quem estamos tratando no texto. O mesmo se pode dizer do Henrique Beltrão mencionado como autor da capa do primeiro disco em que foi gravada a famosa marchinha "Cidade Maravilhosa" (1934). Para ver esta capa: BIBLIOTECA NACIONAL. Rio: Cidade-Paisagem. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 2012. Página 178. Disponível em: <https://issuu.com/alex_souza/docs/fbn_expo_riocidadepaisagem_catalogo> Acesso em 08.jul.2020.

 

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