casuísmos nossos de cada dia

11/06/2020 02:42

O Dicionário Michaelis traz duas interessantes definições de casuísmo[1]: "disposição para aceitar passivamente ideias, doutrinas ou princípios" e "argumento baseado em raciocínio falso e não em princípios gerais". Entre tantos casuísmos recentes borbulhando os debates (ou embates) políticos e sanitários, dois deles ganharam notoriedade nas últimas semanas, envolvendo a cloroquina / hidroxicloroquina e a transmissão do COVID-19 por assintomáticos. Vamos analisar, brevemente, por que tais assuntos desaguaram em casuísmos e quais são, realmente, os fatos em torno destes assuntos. Veremos, ao longo do texto, que o "vírus do casuísmo" não escolhe ideologia e é ambidestro (atinge os que se dizem de "direita" e os que se dizem de "esquerda"). Primeiramente, por que viraram casuísmos?

Sobre a cloroquina / hidroxicloroquina, as substâncias começaram a ser debatidas mais amplamente, no Brasil e para tratamento do COVID-19, no final de março, quando o presidente Jair Bolsonaro iniciou uma "propaganda" de seus supostos benefícios[2]. Imediatamente, as redes sociais passaram a ser ocupadas por uma horda que, aceitando passivamente a ideia, começou a defender a cloroquina / hidroxicloroquina, a despeito das falas de médicos e cientistas (depois, começaram a aparecer médicos favoráveis à cloroquina / hidroxicloroquina no tratamento do COVID-19, mas estes são minoria). No entanto, também se viu, por causa das declarações do presidente, uma outra horda de pessoas contrárias ao uso da cloroquina / hidroxicloroquina, alguns com base científica e outros porque são apenas "do contra" quando se tratam de declarações do atual presidente.

Sobre a transmissão do COVID-19 por assintomáticos, tudo começou quando uma epidemiologista da Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou que seria rara a transmissão da doença por parte daqueles que não apresentam nenhum sintoma[3]. Imediatamente, as redes sociais passaram a ser novamente ocupadas por uma horda de críticos da OMS, alguns com base científica e outros porque são apenas "do contra" quando se tratam de declarações de cientistas. Este último grupo já vinha sendo inflamado por outra declaração do presidente Jair Bolsonaro, segundo o qual a OMS trabalha com "viés ideológico"[4] (como se o próprio declarante não tivesse também o seu viés). A partir da declaração da epidemiologista há pouco mencionada, a principal crítica nas redes sociais passou a ser contra as políticas de isolamento e distanciamento social, acusadas de serem políticas feitas com a intenção de "quebrar países"[5]. Depois de expostos os casuísmos, quais as situações reais em torno da cloroquina e dos assintomáticos?

Sobre a cloroquina / hidroxicloroquina, a OMS retomou os testes com as substâncias[6]. Esta notícia acendeu, nas redes, uma série de elogios a Bolsonaro, alegando que ele estaria certo a respeito das substâncias. Porém, a realidade é que, apesar da retomada dos testes pela OMS, os estudos divergem quanto a eficácia da cloroquina / hidroxicloroquina no tratamento de pacientes com COVID-19[7]: por um lado, um estudo na China obteve resultados positivos, em laboratório, ao testar a cloroquina em culturas de células, além de um estudo francês (Universidade de Medicina de Marselha) que apontara resultados positivos da hidroxicloroquina associada a azitromicina; por outro lado, a ineficácia da cloroquina / hidroxicloroquina foi atestada por dois estudos publicados no periódico The New England Journal of Medicine e outro estudo publicado na revista Journal of the American Medical Association. O estudo publicado na revista Lancet, em maio (e que não recomendava a cloroquina / hidroxicloroquina para tratar pacientes com COVID-19), foi desacreditado e duramente questionado quanto a metodologia de coleta de dados. Novos estudos estão em andamento, mas sofrem contratempos relacionados à necessidade de metodologias mais complexas para a pesquisa e às pressões políticas (por exemplo, as substâncias são bastante recomendadas pelos presidentes do Brasil, dos Estados Unidos e da Venezuela, mesmo sem bases científicas confiáveis).

Sobre os assintomáticos, a realidade é que a OMS se corrigiu a respeito da declaração de uma de suas epidemiologistas[8], divulgando que, na verdade, não há como diferenciar os assintomáticos (aqueles que nunca vão desenvolver sintomas após pegarem o vírus) dos pré-sintomáticos (aqueles que pegaram o vírus e ainda estão na fase anterior aos sintomas), pelo fato de que não dá para saber se, futuramente, a pessoa desenvolverá sintomas ou não. Portanto, não dá para saber, com segurança, as chances reais de um assintomático transmitir o COVID-19 a outras pessoas (se são raras ou não).

A partir de todo o exposto, passamos a distinguir os casuísmos entre as realidades analisadas e assim podemos considerar alguns pontos. Primeiro: o presidente Jair Bolsonaro e seus apoiadores estão errados ao cravarem, seguros, a cloroquina / hidroxicloroquina como saídas para os pacientes com COVID-19, pois isto ainda carece de mais complexos estudos científicos. Segundo: os opositores de Bolsonaro estão errados ao cravarem, seguros, a ineficácia da cloroquina / hidroxicloroquina, pelo mesmo motivo da conclusão anterior. Terceiro: as incertezas quanto aos níveis de transmissão por assintomáticos não são decisivas nas discussões sobre isolamento social, sendo este ainda o caminho mais recomendado para diminuir o contágio do novo coronavírus (sobre até quando utilizar este caminho, é outra discussão que precisa ser feita). Quarto: é casuísta quem se apega a ideia da eficácia da cloroquina / hidroxicloroquina embasado na fala de um presidente; é casuísta quem se apega a ineficácia destas substâncias apenas para ser "do contra" em relação a um presidente; é casuísta quem defende o afrouxamento do isolamento social amparado numa suposta raridade da transmissão por assintomáticos. Quinto: estamos em um tempo de incertezas misturadas com as esperanças de que a ciência nos coloque, novamente, um passo a frente do poder de um vírus; portanto, certos usos políticos destas incertezas e esperanças mais atrapalham do que ajudam (independente se vêm de apoiadores ou opositores da OMS, apoiadores ou opositores de presidentes, etc).



 

Como um estudo sobre cloroquina chacoalhou o mundo e caiu em ...

FONTE DA IMAGEM: https://www.uol.com.br/tilt/noticias/redacao/2020/06/06/como-um-estudo-sobre-cloroquina-chacoalhou-o-mundo-e-caiu-no-descredito.htm

 

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