Cidadão de bem? Não, apenas cidadão!

08/04/2017 16:26

Desde que começou a onda de protestos pedindo o impeachment de Dilma Rousseff, ao mesmo tempo em que certas figuras políticas do "baixo clero" do Congresso passaram a ganhar maior destaque, também vem se avolumando na internet e nos discursos populares o uso da expressão "cidadão de bem", para se referir àqueles que trabalham muito, aparentemente não são corruptos e preferencialmente não se dão a atividades "subversivas" (por exemplo, não apoiam movimentos "comunistas" nem contestam as estruturas injustas do Estado e da sociedade, pois estão muito ocupados em trabalhar)[1]. Há inclusive quem, orgulhosamente, bata no peito dizendo ser um "cidadão de bem", talvez mais pelo massageamento de seu ego do que pela própria veracidade deste caráter (o que a própria pessoa muitas vezes não percebe ou finge não perceber)!

Se percorrermos o histórico da expressão "cidadão de bem", chegaremos a um incômodo episódio: a criação e divulgação do periódico The good citizen, que na primeira metade do século XX circulou pelos Estados Unidos com um discurso racista, anticatólico e antissemita. O "bom cidadão" ou "cidadão de bem" seria aquele que preservaria valores ligados à herança europeia da colonização dos Estados Unidos (a cor branca e a religião protestante). Além desta recordação que pode soar incômoda para aqueles que se acham "cidadãos de bem", também podemos analisar a expressão por um outro viés: a tendência do ser humano de se enxergar no lado positivo, bom e forte, atribuindo a si mesmo ou a seu grupo virtudes que muitas vezes não existem naqueles a quem elas são atribuídas. É a antiga prática de enxergar o mal apenas no "outro", taxando-o de subversivo, maligno, diabólico, herege, ignorante, bárbaro, entre outros adjetivos. Tal constatação pode ser feita, por exemplo, ao se estudar a forma como povos denominam a si mesmos[2].

Pensando pelo viés do parágrafo anterior, vemos algumas tendências discursivas no Brasil que devem nos fazer refletir e agir em nome de uma mudança que ofereça à sociedade possibilidades mais consistentes de abordagem das situações políticas, sociais e culturais.

Por um lado, o discurso que utiliza a expressão "cidadão de bem" e que parte, muitas vezes, de quem na verdade é corrupto e não é tão "de bem" quanto o caráter auto-atribuído. O próprio uso da expressão "cidadão de bem" como uma tentativa de contraposição às ações de corruptos noticiadas pelas mídias oficiais cai por terra se entendermos que, sujeitos a um macro contexto sociocultural de corrupções e "jeitinhos", não há quem possa se dizer "cidadão de bem" com tamanha convicção. E mesmo que se queira deixar de lado esta associação entre o "cidadão de bem" e a incorruptibilidade para se atrelar a expressão à prática do trabalho duro e constante, ainda não seria viável atribuir a alguém a pecha de "cidadão de bem", visto que o trabalho, por si só, não faz uma pessoa ser moralmente virtuosa ou digna de ser tida como modelo a outros (no máximo, o trabalho, por si só, faz uma pessoa ser bastante ocupada e produtora de riqueza).

Outra tendência discursiva, semelhante à ideia do "cidadão de bem", reside na atitude por vezes quixotesca de grupos sociais que, adotando uma fala apocalíptica, enxergam-se como lutadores contra estruturas grandiosas que teriam caráter internacional e que intentariam desmontar conquistas da classe trabalhadora e do povo de um modo geral. Obviamente, não quero aqui, de forma ingênua, negar que haja estruturas capazes de se posicionar e agir contrariamente aos interesses dos trabalhadores e das massas populares, mas a questão não trará nenhuma contribuição à sociedade quanto a conscientização política e ao debate politizador enquanto a tratarmos como uma luta entre o "bem" e o "mal", colocando-nos como o "lado bom da força". Não há uma luta entre o bem e o mal, não há um apocalipse que massacrará os direitos social e historicamente debatidos, construídos, reivindicados e adquiridos: o que há é uma maior evidência de interesses divergentes e que muitas vezes se digladiam de forma desigual (há lados com melhor estrutura de apoio midiático, por exemplo), mas que não justificam discursos apocalípticos nos quais as pessoas devam se atribuir virtudes de "cidadãos de bem" ou de quaisquer outras expressões que criam a dicotomia entre o "eu virtuoso" e o "outro maligno".

Analisadas estas duas tendências discursivas, voltamos a expressão "cidadão de bem" para constatarmos que não é uma expressão que deva ser levada a sério, pois o que há em nosso país são apenas cidadãos, com diferentes e variadas mentalidades, práticas, ideologias e ações. Se alguma destas mentalidades, práticas, ideologias e ações atingir negativamente a coletividade como algo a ser reprovado socialmente (por exemplo, tendências racistas ou sexistas), ainda assim os que não compartilharem desta atitude antissocial não poderão se caracterizar como "cidadãos de bem" só pelo fato de reprovarem tal atitude, pois a "cidadania de bem" é meramente uma falácia daqueles que atribuem tanta virtude a si mesmos que acabam não percebendo (ou deliberadamente fingindo não perceber) suas próprias sujeiras, "jeitinhos", corrupções. Assim, não há "cidadãos de bem": o que há são apenas cidadãos, cada um com suas motivações, suas dinâmicas individuais cotidianamente contextualizadas na vivência coletiva e suas próprias visões (religiosas, políticas, culturais, etc) sobre o mundo ao seu redor.



[1] Estas constatações (e as que vierem ao longo do texto) são resultado de minha intensa atividade de observação dos discursos reproduzidos nas redes sociais, que são um campo aberto para a proliferação de uma infinidade de ideias, visto que as redes, no contexto da democratização virtual, oferecem a qualquer pessoa a possibilidade de ter voz, independente da quantidade, qualidade e veracidade de suas bases de ideias e crenças. Sobre a ideia de cidadão de bem, deixo uma sugestão de leitura semelhante ao pensamento exposto neste texto:

NEVES, Iago. Cidadão de bem: um conceito pequeno-burguês. Disponível em: Acesso em: 08 abr.2017. Publicado em: jul.2016.

 

[2] Povos indígenas da América, por exemplo, dão a si mesmos nomes que significam "gente" ou "povo", diferenciando-os dos que não seriam tão "gente" quanto eles. Ou ainda, temos o caso da China, que adota para si mesma o nome Zhongguo, que significa "terra central", e dos nativos da ilha de Páscoa, que davam a seu território o nome de Te Pito Henua ("umbigo do mundo"). Para ler mais sobre estes casos exemplificados:

Povos indígenas: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-93132012000100012

China: https://mundoestranho.abril.com.br/geografia/por-que-o-nome-de-alguns-paises-muda-de-um-lugar-para-outro/

Ilha de Páscoa: https://planetasustentavel.abril.com.br/noticia/atitude/conteudo_255142.shtml

 

 

Licença Creative Commons

 

Pesquisar no site

Contato

Intimidade com a História