Eu te amo, meu Brasil, eu te amo: motivos para não defender a ditadura militar no Brasil

01/04/2018 01:10

O título deste texto é um verso de uma canção gravada em 1969 pela dupla Dom e Ravel[1] e que se tornaria um dos símbolos culturais da ditadura militar brasileira. Na mesma época, era lançado o slogan "Brasil: ame-o ou deixe-o", como forma de propaganda nacionalista a serviço dos militares no poder. Tudo isto está sendo lembrado aqui pois a data assim o inspira: a virada do dia 31 de março para 1º de abril sempre faz lembrar esse momento repugnante da história brasileira, quando militares tomam o poder, alegando estarem a livrar o Brasil de uma suposta "ameaça comunista", contextualizada na paranoica Guerra Fria.

A quem não viveu o período ditatorial no Brasil e pede para que volte através de intervenção militar, nunca é demais lembrar até onde foi esse propagandeado "amor pelo Brasil", um "amor" que aumentou desigualdades, censurou vozes, combateu "inimigos" e deu páginas tristes à história brasileira, assim como toda ditadura (seja ela dizendo-se de direita ou de esquerda) nos países que a permitem. A seguir, vamos ver três pontos relacionados ao período ditatorial brasileiro que merecem destaque para que não voltemos a pedir ou defender este tipo de regime.

 

Corrupção

Os 21 anos de militares à frente do Poder Executivo brasileiro e de organização da política em torno de uma ordem favorável aos militares tiveram episódios de corrupção[2] que, à época, não eram amplamente divulgados por diversos motivos[3] (falta de autonomia na fiscalização dos agentes políticos, censura à imprensa, restrições ao Legislativo, etc). Muitos casos de corrupção durante a ditadura militar só vieram à tona, timidamente, a partir da abertura iniciada no governo Geisel (1974-1979), ou, escancaradamente, após o fim do período de governos militares. Sobre esta divulgação dos casos de corrupção na ditadura, Campos (2012, pág. 469[4]) afirma que

 

[...] na ditadura, principalmente nos anos mais fechados, foram vistas poucas acusações contra impropriedades cometidas por construtoras, o que evidencia obviamente não o menor número de casos, mas o amordaçamento dos mecanismos de fiscalização e divulgação de irregularidades, que, crê-se, eram até mais frequentes que nos períodos de maior abertura política.

 

Atualmente, apesar dos muitos escândalos de corrupção, vivemos em um país mais livre, no qual tais escândalos podem ser muito mais amplamente investigados, divulgados e cobrados pelos poderes públicos e pela população. E falando em população, esta vem atuando cada vez mais no combate à corrupção[5], o que seria prejudicado caso vivêssemos em uma ditadura, onde um viés ideológico (seja ele qual for) aparelha e controla mais rigidamente os instrumentos que deveriam fiscalizar os "maus feitos" de políticos.

 

Aumento das desigualdades

Pedroso e Pedroso (2007), ao abordarem a desigualdade social no Brasil e no Chile entre as décadas de 1960 e 2000[6], apontam que, durante o período de governos militares, o Brasil teve os 20% mais ricos da população como aqueles que mais cresceram em participação na renda total brasileira, evidenciando o crescimento de uma desigualdade social a despeito do alardeado "milagre econômico".

Outro dado importante aponta que, desde o início do período militar, a concentração de renda aumentou no Brasil[7]. Este dado baseia-se em um estudo (liderado por Pedro Ferreira de Souza, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - IPEA) que contempla a evolução da concentração de renda brasileira entre 1926 e 2013[8]; no caso da ditadura militar, o estudo aponta que, somente entre 1964 e 1967, o salário mínimo havia perdido 20% de seu valor real (já descontada a inflação), enquanto que, entre 1965 e 1968, o 1% dos mais ricos do Brasil elevou seu controle sobre a renda nacional (em 1965, ganhava 10 vezes a renda média do país; em 68, ganhava 16 vezes esta renda). Tal fenômeno é explicado pelo autor do estudo como algo a ser atribuído às isenções fiscais dadas nos primeiros anos do período militar, o arrocho salarial[9] e a repressão aos sindicatos (o que inviabilizou movimentações favoráveis aos trabalhadores).

O governo militar argumentava que tal concentração de renda se dava pois o "bolo" deveria crescer para depois ser repartido (usando palavras do ministro Delfim Neto na década de 1970): na realidade, realmente o bolo cresceu, mas poucos ficaram com suas fatias.

 

Censuras e combate a inimigos políticos

Assim que deram o golpe, os militares buscaram legitimar seu poder através da censura a jornalistas, artistas e intelectuais que ousassem criticar o novo regime. Neste sentido, Samways (2008) destaca a atuação do governo militar para combater políticos opositores e jornalistas que não eram alinhados às ideias dos militares no poder[10], citando Maria Aparecida de Aquino quando esta diz que a censura se deu mesmo antes do Ato Institucional nº 5, tendo como exemplo o caso do jornalista Hélio Fernandes, que foi feito prisioneiro na ilha de Fernando de Noronha após criticar o ex-presidente Castello Branco em 1967[11]. Após o Ato Institucional nº 5, a censura ficou mais dura a todos aqueles que, de alguma forma, se "desviassem" do ideário governamental[12].

Sobre o combate a "inimigos", existem casos polêmicos que ao longo do tempo chegaram a ser atribuídos à ação dos governos militares, tendo entre os casos mais conhecidos a morte de Juscelino Kubitschek, em 1976: de acordo com a Comissão da Verdade de São Paulo[13], JK planejava se candidatar à presidência como opositor aos militares e por isso foi eliminado (pois era visto como ameaça à "estabilidade" do regime militar no Brasil); no entanto, relatório da Comissão Nacional da Verdade aponta que não há como provar a ligação da morte de JK com a atuação de militares do governo[14].

Fora este e outros casos polêmicos, o governo militar combateu seus inimigos políticos de diversas formas, principalmente com cassações de direitos políticos. Apesar da existência de um partido opositor (Mobilização Democrática Brasileira - MDB) e da chance deste partido lançar candidatos em processos eleitorais, o clima era instável para os políticos ligados ao MDB, principalmente após o Ato Institucional nº 5 (1969). Segundo Gordilho (2015, pág. 39-40), tal Ato deu poderes ao presidente Costa e Silva "com a justificativa de combater a subversão", ocasionando, na verdade, a prisão de vários jornalistas e políticos contrários ao governo, tendo como exemplos o ex-presidente Juscelino Kubitschek e o jornalista e ex-governador Carlos Lacerda[15]. Gordilho cita (pág. 42) uma ata da Sessão do Conselho de Segurança Nacional realizada em 16 de janeiro de 1969, na qual se diz claramente os motivos da cassação de políticos:

 

A maior parte dos que hoje estão arrolados é constituída de homens já bastante conhecidos por suas ideias anti-revolucionárias e, aqui, estamos vivendo um dilema revolução ou anti-revolução. Não podemos admitir que se faça um trabalho de maior corrosão ou de oposição à Revolução.

 

Resumindo: políticos eram cassados por suas opiniões contrárias ao regime militar.

 

Considerações finais

Além do que já se sabe a respeito de torturas, desaparecimentos, prisões, exílios, entre outras ações repressivas, o último período ditatorial brasileiro jamais deveria inspirar saudade ou defesa também pelo fato de ter sido um período corrupto, combativo com "inimigos" políticos, gerador de profundas desigualdades sociais e rígido limitador das liberdades de expressão e pensamento.

A ditadura militar brasileira teve a sua frente corruptos com fortes ligações políticas e econômicas com grupos igualmente corruptos, mas tal corrupção não era mostrada ao povo brasileiro em seu real tamanho mediante repressão dos meios de comunicação. A mesma ditadura combateu aqueles que usavam de seus postos políticos para protestarem e opinarem contrários ao que os militares chamavam de "revolução". O governo militar também favoreceu o crescimento da desigualdade social no Brasil com suas políticas econômicas, trabalhistas e salariais que geraram arrocho para os trabalhadores e maior concentração da renda nas mãos dos mais ricos (isso sem contar no aumento da dívida pública brasileira[16] como resultado de diversos empréstimos para custeio de obras que, em parte, não eram concluídas).

Com todo este breve exposto, tem-se razões para afirmar que a virada de 31 de março para 1º de abril não deve ser comemorada e sim lamentada e lembrada como o início de um momento difícil à jovem democracia brasileira.



[1] Letra completa da música: https://www.letras.mus.br/dom-ravel/979917/

 

[2] FREIRE, Marcelo. Conheça dez histórias de corrupção durante a ditadura militar. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2015/04/01/conheca-dez-historias-de-corrupcao-durante-a-ditadura-militar.htm  Acesso em: 31 mar.2018.

 

[3] FREIRE, Marcelo. Ditadura militar brasileira era "cenário ideal" para corrupção, diz historiador. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2015/04/01/ditadura-militar-brasileira-era-cenario-ideal-para-corrupcao-diz-historiador.htm  Acesso em: 31 mar.2018.

 

[4] CAMPOS, Pedro Henrique Pedreira. A ditadura dos empreiteiros: as empresas nacionais de construção pesada, suas formas associativas e o Estado ditatorial brasileiro, 1964-1985. Tese de Doutorado, Universidade Federal Fluminense, 2012. Disponível em: https://www.historia.uff.br/stricto/td/1370.pdf  Acesso em: 13 mar.2018.

 

[5] GOMES, José Vítor Lemes. Os brasileiros frente à corrupção: um estudo sobre comportamento político. 1º Seminário Internacional de Ciência Política, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, set.2015. Disponível em: https://www.ufrgs.br/sicp/wp-content/uploads/2015/09/GOMES-Jos%C3%A9.pdf   Acesso em: 26 mar.2018.

 

[6] PEDROSO, Ledi Cerdote; PEDROSO, Márcia N. Cerdote. Brasil e Chile dos regimes militares ao século XXI: política econômica e distribuição de renda. Revista Sociais e Humanas, Universidade Federal de Santa Maria, vol. 30, nº 2, 2007, pág. 121-133. Disponível em: https://periodicos.ufsm.br/sociaisehumanas/article/view/791/549   Acesso em: 25 mar.2018.

 

[7] MARREIRO, Flávia. Série inédita brasileira mostra salto da desigualdade no começo da ditadura. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2015/10/29/economia/1446146892_377075.html     Acesso em: 29 mar.2018.

 

[8] Uma constatação interessante do estudo é a de que a desigualdade na concentração de renda aumentou justamente durante os dois períodos de ditadura no Brasil: Getúlio Vargas (1937-1945) e os militares (1964-1985).

 

[9] O arrocho se deu principalmente devido às regras de reajuste salarial e negociações coletivas impostas pelo governo de Castello Branco, regras estas que dificultavam as convenções sindicais (também as decisões da Justiça do Trabalho deveriam seguir as regras de reajuste salarial e de negociações coletivas), juntando-se a tudo isto o combate às greves por parte do governo militar. Para maiores detalhes sobre o arrocho salarial no período militar e, de maneira geral, sobre a história da desigualdade no Brasil entre 1926 e 2013, leia:

SOUZA, Pedro Herculano Guimarães Ferreira de. A desigualdade vista do topo: a concentração de renda entre os ricos no Brasil, 1926-2013. Tese de Doutorado, Universidade de Brasília, 2016. Disponível em: https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/22005/1/2016_PedroHerculanoGuimar%C3%A3esFerreiradeSouza.pdf   Acesso em: 13 mar.2018. Sobre o arrocho salarial no período militar: páginas 293-294.

 

[10] SAMWAYS, Daniel Trevisan. Censura à imprensa e a busca de legitimidade no regime militar. IX Encontro Estadual de História, Rio Grande do Sul, 2008. Disponível em: https://eeh2008.anpuh-rs.org.br/resources/content/anais/1212349634_ARQUIVO_Censuraaimprensaeabuscadelegitimidadenoregimemilitar.pdf    Acesso em: 31 mar.2018.

 

[11] As críticas foram feitas no editorial do jornal "Tribuna da Imprensa", na edição de 19 de julho de 1967, um dia após a morte de Castelo Branco. Sobre a prisão de Hélio Fernandes e o imbróglio gerado para os militares, leia:

BARROS, Gisele. Hélio Fernandes é preso em Fernando de Noronha por criticar Castelo Branco. Disponível em: https://acervo.oglobo.globo.com/em-destaque/helio-fernandes-preso-em-fernando-de-noronha-por-criticar-castelo-branco-21711491   Acesso em: 30 mar.2018.

 

[12] Samways (2008) destaca o manual distribuído a jornais do Rio de Janeiro assim que foi divulgado o Ato Institucional nº 5. O manual, assinado pelo general de brigada César Montagna de Souza, proibia aos jornais cariocas a divulgação de notícias que prejudicassem a "imagem ordeira" do Brasil, criticassem os atos institucionais, desmoralizassem o governo e as instituições brasileiras, falassem de greves ou quaisquer movimentos de trabalhadores, mostrassem opiniões e declarações de quem estivesse com direitos políticos cassados e estabelecessem a "desarmonia entre as forças armadas e entre os poderes da República ou a opinião pública".

 

[13] BEDINELLI, Talita. Após 37 anos, a morte do ex-presidente Kubitschek é considerada homicídio. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2013/12/10/politica/1386701338_885414.html   Acesso em: 13 mar.2018.

 

[14] BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório. Brasília: CNV, 2014. Disponível em: https://sedici.unlp.edu.ar/bitstream/handle/10915/49078/Brasil_-_Comiss%C3%A3o_Nacional_da_Verdade._Relatorio._Volume_I__592_p._.pdf?sequence=7   Acesso em: 13 mar.2018. Sobre a morte de Juscelino Kubitschek, ler as páginas 73 a 76 do relatório.

 

[15] GORDILHO, Maria Celina Monteiro. Cassação de mandato, suspensão de direitos políticos e inelegibilidade: relações entre direito e política no regime militar brasileiro (1968-1970). Dissertação de Mestrado, Universidade de Brasília, 2015. Disponível em: https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/18902/1/2015_MariaCelinaMonteiroGordilho.pdf   Acesso em: 13 mar.2018.

 

[16] Segundo o movimento "Auditoria Cidadã da Dívida", a dívida pública brasileira saltou de US$ 3,294 bilhões em 1964 para US$ 105,171 bilhões em 1985. Para maiores detalhes, leia a página disponível em: https://auditoriacidada.org.br/conteudo/corrupcao-e-divida-publica-no-periodo-militar-1964-1985/

 

Licença Creative Commons
 

Pesquisar no site

Contato

Intimidade com a História