FAKE NEWS É LIBERDADE DE EXPRESSÃO?

18/06/2020 20:56

A popularização da internet e o agravamento de polarizações políticas, nos últimos anos, contribuem para a maior disseminação das chamadas fake news, que têm sido objeto até mesmo de investigações envolvendo altos escalões do poder em nosso país. Este texto pretende contribuir para um debate mais amplo sobre as fake news, do ponto de vista do uso da liberdade de expressão. Neste sentido, é necessário percorrer um panorama histórico da ideia de liberdade de expressão, analisando brevemente seus limites (conforme escritores ao longo dos últimos séculos) e sua atuação na sociedade: Quais são os limites da liberdade de expressão? Quem determina estes limites? Quais os perigos do uso político indevido da liberdade de expressão?

O histórico da liberdade de expressão nos remete à democracia ateniense, quando cidadãos debatiam ideias políticas e rumos para a cidade. No século XVIII, o Iluminismo traz a ideia de liberdade de expressão através das obras de Voltaire. No referido século, a ideia de liberdade de expressão passa a ser intensamente debatida. Damos destaque a Voltaire, cujas ideias foram sintetizadas no livro "Os amigos de Voltaire", publicado em 1906 e escrito pela inglesa Evelyn Beatrice Hall; a autora resume as ideias de Voltaire em uma frase: "I disapprove of what you say, but I will defend to the death your right to say it" ("Eu desaprovo o que você diz, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo"). Sobre os debates em torno da liberdade de expressão e o que se pensava sobre ela no século XVIII, Fernandes (2016)[1], ao analisar o histórico da liberdade de expressão, contrapõe Voltaire a outro personagem do século XVIII: o árabe Muhammad ibn Abd al-Wahhab. Para este, todas as decisões devem passar pela vontade de Deus, pois este não aceita parceiros; portanto, quem se pusesse a fazer leis e debater ou alterar a sharia[2], estaria se colocando no lugar de Deus. O que Fernandes apresenta, em seu texto, é como o terrorismo e suas práticas na Europa, em nome da defesa de uma religião e no combate a diversidade de manifestações e opiniões[3], têm limitado a liberdade de expressão e afastado as pessoas do que Voltaire defendia sobre tolerância, que anda junto com a liberdade de expressão.

Dimenstein (2019)[4] expõe a formação de duas grandes tradições em torno da liberdade de expressão, sendo uma americana e outra europeia. A tradição americana parte da Primeira Emenda da Constituição, que diz que o "Congresso não publicará lei [...] a respeito da liberdade de expressão ou da imprensa", ou seja, não iria proibir estas liberdades. Esta tradição foi reforçada pelos escritos do inglês John Stuart Mill (século XIX), que defendia que toda ideia deveria ser colocada em debate, pois o que, a princípio, parece absurdo e radical, tempos depois poderá ser aceito pela sociedade; para Mill, o limite da liberdade de expressão é o dano, ou seja, ideias só podem ser punidas se causarem dano material ou físico. É neste ponto que a tradição americana se diferencia da europeia. Ao longo dos séculos XIX e XX, leis europeias a respeito da liberdade de expressão estabeleceram que uma ideia pode ser punida se tiver potencial de dano, mesmo que não o tenha causado ainda. Por exemplo, a França proíbe qualquer manifestação pública de racismo ou antissemitismo, mesmo que aquela manifestação fique apenas no discurso e não termine em atos racistas ou antissemitas, pois a própria ideia tem potencial de dano, segundo a legislação francesa. Dimenstein exemplifica a diferença entre ambas as tradições utilizando a figura da Ku Klux Klan: "Nos EUA, a Ku Klux Klan pode marchar numa rua com cartazes racistas. O que não pode é ameaçar qualquer pessoa. Na Alemanha, a KKK não teria o direito de existir".

Debater estas questões - natureza e limites da liberdade de expressão - perpassa a história nos últimos três séculos e chega a nossa época com um desafio: a internet. Esta deu voz a milhões de pessoas que, em outros tempos, estariam isoladas ou teriam suas opiniões e argumentos com pouco alcance. Junto com este poder dado pela internet, porém, foi potencializada uma prática que, atualmente, é objeto de intensos debates (e embates) e investigações: as fake news. Seriam elas uma forma de liberdade de expressão? Podemos analisar sob mais de um ponto de vista.

Por exemplo, se considerarmos a forte raiz cristã da cultura ocidental, refletindo-se em processos históricos e mentalidades, poderíamos, rapidamente, eliminar a questão por um ponto de vista da religiosidade cristã, destacando a natureza mentirosa e enganosa das fakenews e confrontando isto com a doutrina cristã segundo a qual a mentira é filha do diabo[5], que os cristãos dizem abominar e tentam não seguir. Porém, apesar das raízes cristãs presentes na formação do Ocidente, a situação é mais complexa e pensá-la é um exercício filosófico e laico, ou seja, sem se prender a influência de uma ou outra instituição ou doutrina religiosa.

Como vimos acima, uma linha de pensamento desenvolvida na América do Norte defende que a liberdade de expressão deve acontecer, sem punições, desde que o que é expresso não gere dano material ou físico, enquanto uma linha de pensamento desenvolvida na Europa defende a possibilidade de punir a liberdade de expressão quando esta carrega em si um potencial de dano. Sob estes pontos de vista, podemos questionar: que danos são trazidos pelas fakenews? Ou ainda, as fake news realmente trazem danos?

Segundo Truzzi (2019)[6], o principal dano das fake news é moral, ao se caracterizar como calúnia, injúria e difamação, mas também se expressa através das práticas de racismo, homofobia, misoginia, entre outras. Para todas estas práticas, o Brasil tem leis específicas, investigando, julgando e punindo quem as comete (embora saibamos o quão lento é o andamento de muitos processos em nosso país e o grau de impunidade que caracteriza parte dos processos). Mesmo havendo leis que preveem punições a quem comete calúnia, racismo, entre outras práticas acima mencionadas e que podem ser consequências de uma fake news, não há, no Brasil, uma lei específica que caracterize fake news como crime[7]. Há projetos voltados ao combate às fake news, como o Projeto de Lei nº 2630[8], de 2020, que propõe caminhos para se promover a liberdade, a responsabilidade e a transparência na internet. Projetos como este, porém, esbarram em uma questão: quem determina o que é verídico, o que é fake news, o que pode ser divulgado e o que deve ser barrado? Responder este questionamento exige que se pense em diversas frentes: uma educação voltada ao pensamento crítico[9], a participação de agências verificadoras que não estejam atreladas a nenhum partido ou grupo político[10], a atuação de órgãos ligados a Justiça, entre outras. No entanto, é de suma importância garantir que estas frentes de combate às fake news não sejam "presas" a figuras políticas e grupos partidários, que comprometem a idoneidade das verificações e do combate às notícias falsas.

Ainda pensando nos danos das fake news, mencionamos a abordagem de Moroni (2019)[11] sobre a influência das fake news na percepção e ação coletivas. Ao abordar as chamadas Big Data (grandes volumes de dados gerados a cada segundo na internet), a autora alerta para o uso de dados dos usuários de internet para fins políticos, criando fake news que podem influenciar processos eleitorais[12], ou para fins violentos, criando fake news que expõem a vida de pessoas e as colocam em risco, sob ameaças de agressões e violências da parte de quem acredita nas fake news divulgadas[13].

Com tudo isto, temos alguns pontos a serem considerados. O tema "liberdade de expressão" continuará sendo objeto de discussões intensas e continuará sendo, ao redor do mundo, objeto de destaques à sua importância ou também de censuras que veem ameaça nesta liberdade. Relacionando a liberdade de expressão às fake news, temos que estas não são liberdade de expressão na medida em que geram danos (sejam eles materiais, físicos ou morais), atingindo pessoas ou grupos. Há casos em que a detecção dos danos causados, para determinar se é liberdade de expressão ou não, é uma linha mais tênue[14], mas isto deve ser objeto de discussões mais profundas, o que só pode ocorrer em ambientes democráticos, abertos ao confronto de ideias e à diversidade destas. Nestes ambientes democráticos, as fake news, não sendo liberdade de expressão, devem combatidas com esforços múltiplos de educação, discussão social e verificação da parte de entidades que não sejam atreladas a interesses políticos, partidários e econômicos específicos.

 


[1] FERNANDES, José Pedro Teixeira. O futuro da liberdade de expressão: quando al-Wahhab supera Voltaire. Disponível em: <https://www.publico.pt/2016/01/12/mundo/opiniao/o-futuro-da-liberdade-de-expressao-quando-alwahhab-supera-voltaire-1720001> Acesso em 18.jun.2020. Publicado em 12.jan.2016.

 

[2] Sharia é, no islamismo, um código de ética e de comportamentos que derivam do Alcorão, livro sagrado dos muçulmanos, e da Sunnah, conjunto de tradições ligadas ao Profeta Muhammad e aos comentários do Alcorão. Para saber mais: IQARA ISLAM. Sharia: Afinal, o que é essa Lei Islâmica? Disponível em: <https://iqaraislam.com/afinal-o-que-e-essa-lei-islamica-shariah> ; STACEY, Aisha. O que é Sharia? Disponível em: <https://www.islamreligion.com/pt/articles/11299/o-que-e-sharia/>

 

[3] Podemos citar, como exemplos: a queima de exemplares do livro "Versos satânicos" (Salman Rushdie), promovida por muçulmanos que viviam na Inglaterra, em 1989; e o ataque ao jornal francês Charlie Hebdo, em 2015.

 

[4] DIMENSTEIN, Gilberto. O melhor resumo sobre a história da liberdade de expressão. Disponível em: <https://catracalivre.com.br/dimenstein/o-melhor-resumo-sobre-a-historia-da-liberdade-de-expressao/> Acesso em 18.jun.2020. Publicado em 22.abr.2019.

 

[5] A base cristã para acreditar que a mentira é filha do diabo está em um trecho dito por Jesus de Nazaré: "Vós sois do diabo, vosso pai, e quereis realizar os desejos de vosso pai. Ele foi homicida desde o princípio e não permaneceu na verdade, porque nele não há verdade: quando ele mente, fala do que lhe é próprio, porque é mentiroso e pai da mentira" (Evangelho de João 8:44).

 

[6] TRUZZI, Gisele. Fakenews: quais os impactos das notícias falsas no seu negócio? Disponível em: <https://www.istoedinheiro.com.br/fake-news-quais-os-impactos-das-noticias-falsas-no-seu-negocio-como-esse-fenomeno-pode-acabar-com-a-reputacao-da-sua-empresa/> Acesso em 18.jun.2020. Publicado em 10.mai.2019.

 

[7] AMARAL, Carlos Eduardo Rios do. Fakenews é crime no Brasil? Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/82580/fake-news-e-crime-no-brasil> Acesso em 17.jun.2020. Publicado em mai.2020.

 

[8] SENADO FEDERAL. Projeto de Lei nº 2630, de 2020. Disponível em: <https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/141944> Acesso em 15.jun.2020.

 

[9] Uma educação escolar cujas práticas ensinem aos alunos o hábito de verificar notícias, por exemplo. Porém, isto exige maior preparo dos profissionais da educação, o que é uma grave deficiência das redes públicas de ensino no Brasil.

 

[10] Temos, por exemplo, o trabalho dos sites https://www.boatos.org/ e https://www.e-farsas.com/ como verificadores de conteúdos na internet, informando se são verdadeiros ou falsos.

 

[11] MORONI, Juliana. Possíveis Impactos de Fake News na Percepção-Ação Coletiva. Complexitas - Revista de Filosofia Temática, Belém, v. 3, n. 1, p. 130-160, jan./jun. 2018. Disponível em: <https://periodicos.ufpa.br/index.php/complexitas/article/view/6625/pdf> Acesso em 17.jun.2020.

 

[12] A autora cita, como exemplos, a eleição presidencial de 2016, nos Estados Unidos, quando foram espalhadas fake news que diziam sobre o apoio do papa Francisco a Donald Trump e um diagnóstico de Mal de Parkinson feito à candidata Hillary Clinton.

 

[13] A autora cita, como exemplo, o caso de Fabiane Maria de Jesus, linchada e morta em Guarujá (SP), em 2014, após ser vítima de uma fake news que a acusava de sequestrar crianças com fins de feitiçaria.

 

[14] Podemos pensar, como exemplo, na recente prisão de Sara Winter (líder do movimento bolsonarista "300 do Brasil"), contra quem pesam acusações de injúria, ameaça e crime contra a segurança nacional. As duas primeiras acusações se mantêm e Sara responde por elas, mas a acusação de crime contra a segurança nacional foi arquivada, pois, no entendimento da justiça, não há elementos que caracterizem suas falas e ações como impedimento do livre exercício dos Poderes. Resumindo: a Justiça entendeu que suas falas contra o STF não causam nenhum dano à instituição (não impedem o livre exercício desta) e nem tem potencial de dano. Isto, claro, não encerra a discussão sobre este ponto, que pode se estender e se aprofundar.

 

Fake News: Liberdade de expressão ou dever de falar a verdade ...

FONTE DA IMAGEM: https://dissenso.org/fake-news-liberdade-expressao-ou-dever-de-falar-verdade/

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