Infeliz a nação que precisa de heróis

16/01/2017 18:08

A frase que intitula este texto foi dita pelo escritor alemão Bertolt Brecht (1898-1956). Esta simples frase traz em si um incômodo a quem lê: "Como assim uma nação é infeliz quando precisa de heróis? Então os heróis são desnecessários?" Antes de mais nada, é preciso pensar algumas questões sobre o "herói": o que é o herói? Quem constrói o herói e por quê?

A noção de herói está muito ligada a grandes feitos, bravura, coragem, desprendimento, altruísmo, solidariedade[1]. Oras, então como uma nação é infeliz ao precisar de pessoas com estas virtudes e realizações? Daí partimos para o segundo questionamento do parágrafo anterior. O herói é construído! Ninguém nasce herói ou se faz herói sozinho. O grupo no qual o indivíduo vive é que vai alçá-lo à categoria de "herói".

Esta construção do herói pode passar pela projeção que fazemos no outro daquilo que gostaríamos de ser, pensar e fazer ou como tentativa de reafirmar o que pensamos, sentimos e fazemos, ou ainda pelo senso de acomodação, sentindo-nos mais seguros e tranquilamente acomodados porque alguém está fazendo e lutando por nós. Este senso de acomodação podemos ver nas histórias dos "super heróis", nas quais as pessoas podem dormir tranquilas porque Batman, Super Homem, Homem Aranha e companhia estão lutando por eles. Ou ainda, pensando em questões políticas e sindicais, por exemplo, como parece bom acomodar-se sabendo que líderes estão tomando a frente para conduzir as pautas de defesa de uma categoria ou de um grupo social, político, cultural. Já a projeção acontece quando, por exemplo, um grupo político quer legitimar seu poder projetando em personagens históricos seus próprios valores e princípios, como no caso da figura de Tiradentes, que ganhou "ares republicanos" quando foi alçado à categoria de herói brasileiro nos primeiros tempos da República brasileira[2]. Ou ainda, acontece quando um determinado grupo escolhe personagens que simbolizem e sintetizem valores fundamentais defendidos pelo grupo, como no caso, por exemplo, de grupos políticos de esquerda quando reverenciam figuras como Che[3], Stalin[4], Marighella[5], entre outros, ou os grupos políticos de direita quando reverenciam os militares que governaram o Brasil[6], Ustra[7], entre outros[8].

Historicamente, é comum a construção de heróis partindo da encarnação de valores e princípios sociais e da exaltação de quem defende a sociedade contra seus inimigos. No entanto, a infelicidade da nação que precisa de heróis está justamente nestes princípios de exaltação e encarnação, a partir do momento em que uma sociedade ou um grupo paralisa sua capacidade de ação e transformação em prol do herói que foi construído, ou seja, o grupo social se acomoda ou se "anestesia" ao ver seus anseios e ideias encarnados por alguém em quem este grupo acaba projetando suas esperanças. Este grupo, então, pode assumir a atitude de se mobilizar somente quando o "herói" conclamar a isto ou pode simplesmente se colocar como espectador das ações do seu "herói", portando-se por vezes como "torcedor".

A primeira atitude (mobilização somente quando o "herói" dá o comando) podemos exemplificar com o uso da palavra "golpe" para todo o contexto envolvendo o processo de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff; o contexto do processo passou a ser chamado de "golpe" por vários grupos e movimentos de esquerda quando assim o contexto foi definido em discursos proferidos pelo ex-presidente Lula[9]. A segunda atitude ("torcer" pelo herói e ser seu espectador) podemos exemplificar com a movimentação em torno da figura do juiz Sérgio Moro, alçado à condição de herói nacional pela sua condução da Operação Lava Jato[10] e que ganhou, entre as massas populares, uma "aura intocável" que o blinda de questionamentos às suas ações como juiz[11]. Se Lula é um político honesto ou não e se Moro está conduzindo honesta e eticamente a Operação Lava Jato ou não, este não é o alvo desta reflexão, mas sim o fato de que tanto Lula como Moro, em momentos e por motivos diferentes, ganharam das camadas populares a pecha de "herói" e têm em torno de si uma "aura mítica" que impede a muitos brasileiros de questioná-los em suas ações e palavras (experimente colocar em xeque a integridade de Lula a um petista ou a de Moro a um de seus defensores).

Considerando o exposto no parágrafo anterior, as redes sociais vêm potencializando a visibilidade daqueles que adotam heróis e se alienam da necessidade de também se portarem como agentes transformadores da sociedade, torcendo por figuras que eventualmente ganham destaque no cenário nacional. Foi assim que as redes sociais se inundaram, momentaneamente, de postagens, hashtags e memes exaltando Joaquim Barbosa, Eduardo Cunha, Newton Ishii (o "Japonês da Federal"), Janaína Paschoal, etc[12], da mesma forma que ainda se inunda de homenagens e "torcidas" a Dilma Rousseff, Lula, Moro, entre outros, dependendo da tendência ideológica de quem posta.

Voltando à ideia brechtiana, projetar os anseios da sociedade em um personagem e exaltá-lo como síntese dos valores de um grupo podem trazer consequências não boas para a sociedade, se isto a imobiliza e a faz esperar que outro (no caso, o "herói") faça pelo grupo aquilo que ele mesmo poderia fazer mediante mobilizações (protestos, abaixo-assinados, pressões sobre os governantes e as autoridades, etc). Que consequências não boas seriam estas? Por exemplo, permitir que seus "heróis" estejam livres para atos corruptos, visto que a "aura heroica" os blinda de sentimentos populares adversos[13]; ou ainda, deixar de lado o senso crítico quando seus "heróis" cometem erros e alegar que fizeram o que o povo gostaria que fizessem ou que fizeram bem ao povo apesar de seus erros[14].

Partindo da frase de Brecht, como uma nação pode evitar a "infelicidade"?

Primeiro: não se apegando aos heróis. Não é errado um grupo social ter referências (que sejam pessoas, fatos históricos, livros, etc), mas também não é saudável a este grupo apegar-se aos seus heróis ao ponto de se tornarem meros espectadores da sua própria dinâmica social. Segundo: agindo. Quaisquer mobilizações sociais fazem um povo ser transformador de suas realidades (sejam as mobilizações cotidianas ou as de grande relevância em um dado momento[15]). Não adianta, por exemplo, esperar um herói que seja modelo de integridade quando os que o reverenciam se dão a atos corruptos (pequenos ou grandes); ou ainda, não adianta esperar um herói que faça pela sociedade o que ela muitas vezes não está disposta a fazer.

A frase de Bertolt Brecht continuará ecoando e incomodando a todos os que realmente pararem para pensar em como estão lidando com a questão dos "heróis" sociais ou nacionais. Pensar a relação da sociedade com o heroísmo significa também pensar o lugar das camadas populares na construção e condução de seu próprio destino.



[1] Conceito de herói. Disponível em: https://conceito.de/heroi  Acesso em: 16 jan.2017. Publicado em: 07 dez.2012.

 

[2] FRANCO, Paula de Almeida. Tiradentes: a construção de um herói republicano. Disponível em: https://historiandonanet07.wordpress.com/2011/04/21/tiradentes-a-construcao-de-um-heroi-republicano/  Acesso em: 16 jan.2017. Publicado em: 21 abr.2011.

 

[3] FUENTES, Pedro. Che Guevara, herói e mártir da revolução permanente. Disponível em: https://esquerdasocialista.com.br/che-guevara-heroi-e-martir-da-revolucao-permanente/  Acesso em: 16 jan.2017. Publicado em: 2016.

 

[4] ALVES, Cristiano. Stalin foi um herói e seus críticos trotskistas, psicopatas e fracassados. Disponível em: https://apaginavermelha.blogspot.com.br/2013/12/literatura-stalin-foi-um-heroi-e-seus.html  Acesso em: 16 jan.2017. Publicado em: 23 dez.2013. Apesar do texto focar mais na crítica à pessoa e pensamento de Lev Trotsky, oferece um panorama de como grupos de esquerda veem Stalin.

 

[5] CAPIBERIBE, Artionka. Marighella - O que é um herói? Disponível em: https://www.revistaforum.com.br/2012/08/30/marighella-o-que-e-um-heroi/  Acesso em: 16 jan.2017. Publicado em: 30 ago.2012.

 

[6] Os generais e a salvação do Brasil. Disponível em: https://heroisdedireita.blogspot.com.br/  Acesso em: 16 jan.2017. Publicado em: 24 mai.2016.

 

[7] Torturador ou herói? Disponível em: https://heroisdedireita.blogspot.com.br/2016/05/torturador-ou-heroi.html  Acesso em: 16 jan.2017. Publicado em: 06 mai.2016.

 

[8] Aqui é importante ressaltar que a citação de nomes a nível nacional ou internacional não significa que tais figuras sejam "unânimes" ou majoritariamente reverenciadas em todos os grupos políticos (seja de direita ou de esquerda).

 

[9] PORTAL G1. Lula diz a líderes de esquerda que o país resistirá a "golpe do impeachment". Disponível em: https://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2016/04/lula-diz-lideres-de-esquerda-que-pais-resistira-golpe-do-impeachment.html  Acesso em: 15 jan.2017.

REVISTA ÉPOCA. Em vídeo, Lula chama impeachment de golpe e faz apelo aos deputados. Disponível em: https://epoca.globo.com/tempo/noticia/2016/04/em-video-lula-chama-impeachment-de-golpe-e-faz-apelo-aos-deputados.html  Acesso em: 15 jan.2017.

 

[10] CONSTANTINO, Rodrigo. Algo está mudando e alimenta a esperança no Brasil. Disponível em: https://rodrigoconstantino.com/artigos/algo-esta-mudando-e-alimenta-a-esperanca-no-brasil/  Acesso em: 16 jan.2017. Publicado em: 25 nov.2015.

 

[11] CANAL SEU TUBE. Sérgio Moro herói - O mundo reconheceu - Eleito 13º maior líder mundial pela Fortune. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=LCtYh_XqyJ8  Acesso em: 16 jan.2017. Publicado em: 24 mar.2016.

A referência a um vídeo do Youtube é uma amostra do que a internet vem disponibilizando sobre Sérgio Moro, sendo apenas uma entre inúmeras produções (vídeos, memes, páginas, etc).

 

[12] BAÇO, José António. Heróis da direita têm prazo de validade. Disponível em: https://www.chuvaacida.info/2016/04/herois-da-direita-tem-prazo-de-validade.html  Acesso em: 16 jan.2017. Publicado em: 05 abr.2016. Apesar do texto ser voltado para a crítica às direitas no Brasil, vale como uma amostra da "rapidez" com que muitos brasileiros elegem "heróis" e os esquecem.

 

[13] Mesmo que a mídia mostre erros deste "herói" ou que espaços virtuais mostrem na internet um outro lado destas figuras, boa parte da população tende a não aceitar ou não enxergar, "hipnotizadas" que estão por aquilo que foi construído em torno de seus "heróis" (virtudes, etc).

 

[14] Apontar esta consequência baseou-se em experiências pessoais deste autor nas redes sociais, testemunhando postagens em que se defende Sérgio Moro a despeito dos argumentos que mostram os erros do juiz ao divulgar áudios envolvendo Lula, bem como postagens em que se defende políticos petistas a despeito dos argumentos que mostram suas ligações com esquemas corruptos na Petrobras. No primeiro caso citado, muitas postagens de defensores de Moro alegaram que ele fez o que o povo gostaria que fizesse; no segundo caso, houve (e ainda há) diversas postagens alegando que o PT fez bem ao povo a despeito de seus erros no poder.

 

[15] Por mobilizações cotidianas, entenda-se tudo o que cada indivíduo, dentro da coletividade e no cotidiano, pode fazer para transformar a sociedade (não ser corrupto, valorizar a educação, etc); já por mobilizações de grande relevância em um dado momento, entenda-se as movimentações coletivas que chamam a atenção de um grupo para uma causa (protestos, abaixo-assinados, quaisquer atos envolvendo multidões, etc).

 

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