LIÇÕES DO PASSADO - A AUDITORIA VARGUISTA

09/10/2016 21:11

É comum pessoas questionarem o porquê de estudarem História na escola; algumas vão mais longe e "batem o martelo" dizendo que História não serve para nada. Mas, como historiador, preciso cumprir a árdua tarefa de mostrar para que serve a História e neste texto cumprirei um pouco disto apontando a História do passado como referência aos nossos tempos atuais. Como a discussão da vez no Brasil gira em torno da PEC 241/2016[1], vamos buscar uma referência no passado para entender melhor a desnecessidade de tal PEC.

Sobre a PEC 241/2016, não é segredo do que ela trata. Ao final deste texto, será deixado o link para quem quiser ler a PEC na íntegra e acompanhar a tramitação no Congresso Nacional. O fato é que a PEC, proposta pelo presidente Michel Temer, é mais uma daquelas formas de fazer o povo pagar a conta de uma crise que foi alimentada pelo contexto internacional e por uma incompetente gestão financeira da parte do governo federal (desde o primeiro mandato de Dilma Rousseff). No entanto, a propaganda em torno da PEC quer fazer o povo engolir que ela é imprescindível e que, sem a aprovação da PEC, não há outra alternativa ao país para sair da crise econômica. Mas a História tem suas lições e aqui precisamos voltar até a década de 1930 (Era Vargas) para aprender e refletir sobre uma destas lições.

Em 1931, o governo federal apurou que apenas 40% dos contratos referentes a dívida externa brasileira estavam documentados, além da constatação de que não havia controle das remessas para o exterior e não havia uma contabilidade regular. Assim, sob o governo de Getúlio Vargas, um detalhado processo de auditoria e renegociação (que durou até 1943), descrito por Fattorelli (2006), fez a dívida externa brasileira cair da seguinte forma:

- US$ 1,294 bilhão em 1930

- US$ 698 milhões em 1945

- US$ 548 milhões em 1948

Esta auditoria feita no governo Vargas seguiu uma metodologia baseada na criação da Secretaria Técnica da Comissão de Estudos Econômicos e Financeiros, na fiscalização do serviço dos empréstimos externos, na análise de todos os contratos federais, estaduais e municipais e no levantamento das condições contratuais. A dívida externa foi suspensa em 1931 (logo no início dos trabalhos de auditoria) e procedeu-se com uma renegociação das dívidas, seguida da celebração de acordos que fixavam as bases das remessas para o pagamento da dívida, conforme a capacidade brasileira de pagamento.

Ainda segundo Fattorelli (2009), a redução do montante da dívida e do fluxo de pagamentos permitiu maiores recursos para investimentos na industrialização brasileira e na implantação de direitos sociais. O único erro do governo Vargas, segundo Fattorelli e Ávila (2009), foi não ter reivindicado a reparação do havia sido pago indevidamente.

A Constituição Federal de 1988, no artigo 26 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, estabelece uma nova auditoria na dívida brasileira. Seguindo este preceito constitucional, foi instalada no Congresso Nacional, em 1989, uma comissão mista para analisar a dívida brasileira, mas o relatório final não foi votado em plenário até hoje.

No Plano Plurianual[2] 2016-2019, uma emenda do deputado federal Edmilson Rodrigues (PSOL - Pará) incluiu a auditoria da dívida como compromisso do governo federal com participação de entidades civis, porém Dilma Rousseff vetou a realização da auditoria. De acordo com o site da Auditoria Cidadã da Dívida[3], não há transparência do governo federal com relação aos beneficiários da dívida brasileira, cujos nomes são tidos como sigilosos pelo governo.

Pensando esta experiência brasileira de auditoria no governo Getúlio Vargas e no desenrolar das ações em torno da auditoria desde a década de 1980, podemos nos questionar:

A quem interessa o veto dado por Dilma Rousseff?

A quem interessa a não realização da auditoria?

A quem interessa o silêncio de Michel Temer, de sua equipe econômica e da maior parte da classe política em relação à auditoria?

O debate em torno da auditoria, como foi visto ao longo do texto, não é algo recente e ganhou força após a auditoria iniciada pelo governo do Equador, em 2007. A experiência equatoriana, segundo Miranda (2011), foi positiva por provar a ilegalidade da dívida.

Considerar a auditoria feita no governo Vargas como parâmetro pode levar a um questionamento sobre o tempo que todo o processo pode levar. Este questionamento, porém, cai quando pensamos que a proposta da PEC é para os próximos 20 anos, portanto o processo de auditoria certamente demoraria menos tempo e oferece uma saída à crise econômica brasileira sem sacrificar investimentos em educação, saúde, infraestrutura, etc.

Debater a auditoria neste momento da política e da economia brasileira significa aumentar ainda mais a pressão sobre o governo, pressupondo também que esta necessária ideia seja levada ao conhecimento do maior número possível de brasileiros.

 

Para saber mais sobre a PEC 241/2016:

Proposta de Emenda Constitucional na íntegra - <https://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=B8292E0478253FA314F34AFAB616EB96.proposicoesWeb1?codteor=1468431&filename=PEC+241/2016>

Tramitação da PEC no Congresso Nacional - <https://www.camara .gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2088351>

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

AUDITORIA CIDADÃ DA DÍVIDA. Escândalo: Dilma veta a realização de auditoria da dívida pública com participação de entidades da sociedade civil. Disponível em: <https://www.auditoriacidada.org.br/blog/2016/01/14/dilma-veta-auditoria/> Acesso em: 08 out.2016. Publicado em: 14 jan.2016.

 

BRASIL. Constituição Federal de 1988. disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm#adct> Acesso em: 06 out.2016.

 

FATTORELLI, Maria Lúcia. Auditoria Cidadã da Dívida: uma Experiência Brasileira. Primer Simposio Internacional sobre Deuda Pública, Auditoria Popular y Alternativas de Ahorro e Inversion para los Pueblos de América Latina, Caracas (Venezuela), 22 a 24 de setembro de 2006. Disponível em: <https://www.cadtm.org/IMG/pdf/Maria_lucia.pdf> Acesso em: 09 out.2016.

 

_________________________. Investigar a dívida pública. Disponível em: <https://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=317> Acesso em: 06 out.2016. Publicado em: 05 fev.2009.

 

FATTORELLI, Maria Lúcia; ÁVILA, Rodrigo Vieira de. A dívida e as privatizações. Disponível em: <https://www.auditoriacidada.org.br/wp-content/uploads/2012/09/A-Divida-e-as-Privatizacoes.pdf> Acesso em: 07 out.2016. Atualizado em: jan.2009.

 

MIRANDA, Tiago. Especialistas defendem auditoria da dívida pública brasileira. Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/ECONOMIA/203693-ESPECIALISTAS-DEFENDEM-AUDITORIA-DA-DIVIDA-PUBLICA-BRASILEIRA.html> Acesso em: 09 out.2016. Publicado em: 06 out.2011.

 



[1] Quando aqui se trata a PEC 241/2016 como "discussão da vez", veja aqui uma enorme carga de generosidade, pois o que menos se veem (especialmente nas redes sociais) são discussões saudáveis, civilizadas, pautadas pelo debate de ideias para buscar a melhor solução; pelo contrário, o que mais se veem são embates verbais carregados de slogans, palavras de ordem e tolos chavões que só prestam desserviços a uma discussão já em muito prejudicada pela histórica alienação política de muitos brasileiros (principalmente aqueles que orgulhosamente dizem odiar política).

 

[2] O Plano Plurianual (PPA) é um instrumento de planejamento das ações do governo federal. Para saber mais, leia: <https://www.segplan.go.gov.br/post/ver/115737/o-que-e-o-plano-plurianual-ppa>

 

[3] O movimento Auditoria Cidadã da Dívida foi criado em 2001. No ano anterior, um plebiscito realizado pela Rede Jubileu Sul Brasil teve a participação de 6 milhões de brasileiros, dos quais 96% disseram "não" ao pagamento da dívida externa sem uma auditoria. No entanto, como o governo federal à época não realizou a auditoria, surgiu a Auditoria Cidadã da Dívida para acompanhar a evolução do endividamento brasileiro e pressionar o governo pela auditoria. Para saber mais, leia: <https://www.jubileusul.org.br/quem-somos> e <https://www.auditoriacidada.org.br/quem-somos/>

 

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