O fascínio dos antigos pela origem mítica de seus líderes

07/08/2015 21:39

Há temas na História que instigam a imaginação e levam as pessoas a se interessarem um pouco mais por histórias antigas. Um tema que tem estas características é a origem mítica de líderes que passam por grandes perigos desde o nascimento e são envoltos em profecias e promessas divinas. O que leva as mitologias antigas a relatarem estas origens tão cercadas de heroísmo? Vamos analisar a origem de grandes personagens, históricos ou não, que compartilham de periculosidade em seus primeiros anos de vida: Sargão, Moisés, Édipo, Rômulo e Remo, Ciro e Jesus. É importante ressaltar aqui que o uso das palavras “mitologia”, “mítico” e “mitológico” vai muito além da ideia de “histórias verdadeiras” ou “lendas”. Os mitos são relatos ligados ao sagrado, para explicar algo em sua origem e tendo personagens ou influências sobrenaturais. Com esta ideia é que podemos chamar de “mito” a origem dos personagens que vamos analisar como exemplos do fascínio da humanidade por líderes fortes com origem heroica.

Sargão foi um rei que dominou o sul da Mesopotâmia no final do III Milênio a.C. Um texto assírio do século VII a.C. relata que Sargão era filho ilegítimo de uma sacerdotisa. Por este motivo, ele foi colocado, ainda bebê, em um cesto e depositado nas águas do rio Eufrates, até ser encontrado por um carregador de água chamado Akki, que o criou e o fez seu jardineiro.

Moisés, libertador dos hebreus, tem sua vida relatada nos livros bíblicos de Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio. Segundo o relato bíblico (Êxodo 1,15 – 2,10), uma ordem do faraó egípcio dizia que todo menino hebreu recém-nascido deveria morrer para evitar a multiplicação dos hebreus. No entanto, a mãe de Moisés, para protegê-lo, colocou-o em um cesto e deixou-o no rio Nilo, até que o menino foi encontrado pela filha do faraó e por ela foi criado.

Édipo teve sua vida contada na obra Édipo Rei, do escritor grego Sófocles (século V a.C.). No livro, Édipo é um bebê jurado de morte por estar envolto em uma profecia segundo a qual ele mataria o pai e se casaria com a mãe. Seu avô, rei de uma cidade grega, manda matar o bebê, mas o executor fica com pena e o abandona, e logo após um pastor o encontra e o adota.

Rômulo e Remo aparecem nos mitos romanos e em relatos de escritores gregos. Eles teriam vivido no século VIII a.C. A mãe, Reia Silvia, era sacerdotisa e teria sido fecundada pelo deus Marte. O fruto da gravidez foi os gêmeos, que foram lançados ao rio Tibre pelo usurpador do trono da cidade de Alba Longa. Porém, os bebês sobreviveram e foram amamentados por uma loba, sendo depois adotados por um pastor da região.

Ciro foi imperador da Pérsia no século VI a.C. Seu nome consta na Bíblia como libertador dos judeus que se encontravam exilados na Babilônia. O escritor grego Heródoto (século V a.C.) relata sua origem da seguinte forma (Livro I, 108 a 113): o rei Astíages, que governava a Média e tinha a Pérsia como subordinada, sonhou que de sua filha nascia uma videira que cobria toda a Ásia. Instruído por magos de que a videira seria um neto seu que iria tomar-lhe o poder, Astíages manda eliminar o bebê que nasceu de sua filha. O bebê, chamado Ciro, foi entregue a Hárpago para que este o matasse, mas Hárpago, usando de compaixão, entregou Ciro a um pastor e este o criou como filho.

Jesus de Nazaré, cuja vida e palavras deram origem ao cristianismo, tem sua vida relatada principalmente nos evangelhos bíblicos de Mateus, Marcos, Lucas e João. Segundo os relatos bíblicos, sua mãe, Maria, ficou grávida por ação divina, estando Jesus já cercado por profecias que falavam de seu caráter divino e messiânico. Logo após o seu nascimento, Jesus foi perseguido pelo rei Herodes (vassalo do Império Romano), que viu no bebê uma ameaça ao seu poder. Maria e seu esposo José levaram Jesus em fuga para o Egito, de onde voltaram somente quando Herodes morreu.

Note que há muitas semelhanças entre os relatos: o personagem principal está envolto em uma profecia ou promessa divina, e isto ameaça principalmente quem detém o poder; a tentativa de eliminação do personagem não dá certo, normalmente com intervenção divina que o ajuda a ser salvo; o personagem é encontrado e criado por pessoas que muitas vezes não sabem de sua origem. Outro ponto em comum é o destino glorioso dos personagens que tiveram estas origens perigosas e heroicas: Sargão conquista diversas cidades do sul da Mesopotâmia e funda uma grande cidade chamada Acad; Moisés lidera os hebreus em sua saída do Egito e dá-lhes uma legislação que garante o culto monoteísta e influencia o judaísmo, o cristianismo e o islamismo; Édipo foi rei de Tebas e livrou a cidade do perigo de um monstro mitológico; Rômulo e Remo destituíram o rei de Alba Longa e fundaram a poderosa cidade de Roma; Ciro destruiu o Império da Média e lançou as bases para que os persas dominassem da Grécia à Índia; e Jesus deu início a um movimento religioso que hoje congrega 2 bilhões de pessoas que o adoram como Deus.

Desde os mais remotos tempos, a humanidade tende a associar sua identidade nacional ou étnica a heróis que encarnam os valores socialmente aceitos e que são incentivados como virtudes. Estes heróis encarnam a própria construção de um povo ou de um grupo (que pode ser étnico, econômico, social, religioso, etc). Neste contexto, é importante que a história destes heróis seja lembrada e contada, com fatos que mostrem sua missão ou que apontem desde o início o propósito divino de suas ações. No caso de Moisés, por exemplo, é enfatizado o seu nascimento no contexto de um decreto real que dificulta a sobrevivência de Moisés logo após nascer, mas o relato é conduzido no sentido a mostrar que ele tem proteção divina e os fatos de sua vida canalizarão para a função para o qual foi divinamente escolhido: libertar os hebreus. Ou ainda, no caso de Ciro, vemos sua missão logo antes do seu nascimento, no sonho que o avô tivera (a videira que nasce da mãe de Ciro), e dali percebemos a história sendo conduzida em função desta missão, com o relato de sua sobrevivência e de seu crescimento até ter condições de derrotar o Império da Média.

Na construção dos relatos sobre estes personagens, vemos a associação destes a virtudes que se quer perpetuar em um grupo. Assim, vemos a conhecida tolerância dos persas personificada em Ciro quando ele dá liberdade de culto aos povos sob seu domínio, ou o caráter bélico dos povos da Mesopotâmia personificado em Sargão que conquista diversas cidades da antiga Suméria, ou o amor cristão personificado em Jesus que ensina preceitos de respeito e doação de si, ou a obediência hebreia a seu Deus personificada em Moisés que segue as palavras divinas para conduzir o povo hebreu.

Na verdade, esta construção de valores nacionais ou étnicos com auxílio dos mitos em torno de seus heróis não é peculiar apenas dos povos antigos. Temos exemplos recentes em dois países da era contemporânea: o Brasil, que em seus primeiros anos da República distinguiu uma legião de heróis para legitimar as ideias republicanas e transmitir valores como patriotismo; e a Coreia do Norte, cujo governo criou uma mitologia na qual o primeiro líder, Kim Jung-Il, teria nascido no monte sagrado Paektu como uma “estrela brilhante” que iluminaria a Coreia (historicamente, o líder Kim Jung-Il nasceu na Sibéria).

Um outro detalhe que não passa despercebido é a presença dos personagens que contribuem como fios condutores das histórias, tendo papeis de diversos graus de importância. É o caso, por exemplo, das mulheres que geram os personagens aqui analisados. Nas origens de Sargão, Rômulo e Remo, Moisés e Jesus, temos suas mães com alguma forma de ligação com a divindade, sendo mulheres as quais se associam ideais de pureza (no caso das sacerdotisas mães de Sargão e de Rômulo e Remo), obediência (caso de Maria, mãe de Jesus) e fé (virtude implícita no relato sobre Joquebed, mãe de Moisés). Nelas também vemos implícitas a virtude da coragem, cada uma a sua maneira: as mães de Sargão e de Rômulo e Remo que são obrigadas a enfrentar a ira de quem as condena por terem engravidado mesmo estando em serviço religioso; a mãe de Jesus que teve de lidar com o perigo de ser mãe antes do casamento; e a mãe de Moisés que teve de esconder o menino sabendo dos perigos trazidos pelo decreto do faraó.

Este tipo de análise e de abordagem dos personagens históricos e míticos só faz crescer o interesse em torno de suas trajetórias e da mobilização social, cultural e religiosa em torno deles ao longo dos séculos.

 

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