O passado nas mãos do poder

14/02/2015 01:17

Em tempos como os nossos, onde um mundo a nosso dispor faz com que todos falem de tudo, temos uma sociedade dividida entre quem produz informações e conhecimentos e quem apenas os reproduz. A internet tem sido um fértil terreno para os reprodutores que, a todo momento, espalham as informações sobre todos os assuntos, muitas vezes sem questionar quem são ou o que pensam os produtores destas informações.

Ultimamente, abrir as redes sociais no Brasil tem sido uma experiência desagradável de desinformação e desserviço disfarçados de politização. Todos acham saber tudo sobre o momento político brasileiro, todos opinam com seus gritos de impeachment, suas acusações contra “coxinhas” ou “petralhas”, suas convocações para marchas e protestos que interessam a sabe Deus quem, seus discursos carregados de paixão e ódio como se fosse possível “torcer” por um partido como se torce por um time de futebol. E em meio a tantas coisas que as pessoas publicam nas redes sociais, na maioria das vezes sem passar pelos filtros da verdade e da imparcialidade, uma das grandes vítimas é o passado. De repente, eleitores e militantes acabaram se tornando também historiadores capazes de analisar e até distorcer o passado para legitimar seus discursos, protestos e “paixões políticas”. Este movimento de olhar para o passado acontece independentemente do partido ou das simpatias políticas.

Percebi este “movimento passadista” ao observar nas redes sociais inúmeras comparações entre o governo presidencial tucano (1995-2002) e os governos presidenciais petistas (desde 2003). Analisar o que cada um fez ou deixou de fazer é um ato legítimo e necessário, pois a História tem em si este caráter essencial de ser memória. Junte-se a isto o direito que todos têm de saber o que ocorreu no passado (lembrando que a palavra “História”, no grego, significa “qualidade de saber”), por isto é necessário sempre rememorar governos, fatos e mentalidades de todas as épocas. No entanto, algumas comparações e usos do passado extrapolam os limites da memória e do saber, tornando-se manipulações, justificativas e tentativas de armar os militantes contra seus “inimigos”.

Falando concretamente sobre as ideias desenvolvidas até aqui, podemos citar o uso do passado tanto por militantes tucanos quanto por militantes petistas em nome de seus argumentos, fazendo com que a História ocorra em função de suas ideias. Muitos petistas nas redes sociais, sempre que os outros expõem os maus feitos do PT, recorrem ao passado tucano para tentarem mostrar que era pior; já muitos tucanos nas redes sociais, sempre que os outros expõem os maus feitos do PSDB, recorrem ao passado petista para também tentarem mostrar que com o atual partido no poder as coisas são ruins. O problema destas apropriações do passado é que estes militantes, tanto petistas quanto tucanos, o utilizam para esconder algo e desviar o foco de algum assunto: ao invés de fazerem uma autocrítica e repensarem as práticas de seus partidos, acusam o oponente para deslegitimá-lo e fazem com isto uma política suja e desonesta, como foi o caso das últimas eleições presidenciais no Brasil, quando os principais candidatos, Dilma Rousseff e Aécio Neves, frequentemente recorriam ao passado para diminuírem um ao outro. Um outro exemplo para ser ainda mais concreto: os petistas preferem destacar a origem dos atuais problemas de corrupção na Petrobrás (ligados ao governo FHC) do que fazer uma autocrítica sobre o envolvimento de petistas nestes esquemas, enquanto os tucanos preferem destacar as sujeiras petistas na Petrobrás ao invés de fazer uma autocrítica sobre o envolvimento de tucanos nos mesmos esquemas.

Talvez alguém pense que seja ingenuidade imaginar que não deveriam acontecer estes ataques e manipulações ou leituras distorcidas e seletivas do passado. Realmente, sabemos que era de se esperar esta “guerra” entre governo e oposição com a utilização do passado como arma de ataque ou defesa, mas devemos ainda acreditar que neste país venha a existir uma seriedade política que leve a autocrítica ao invés do uso indiscriminado de um arsenal desonesto de ataques, que se tornam ainda mais desonestos quando usam os “idiotas úteis” que propagam todo tipo de informação nas redes sociais sem se preocuparem com a imparcialidade e a veracidade.

Outro aspecto da manipulação do passado por “militantes virtuais” é a propaganda que muitas vezes não reflete a realidade. Só para citar um exemplo, foi divulgado no Facebook uma montagem onde se dizia que Lula e Dilma haviam criado 18 universidades federais, ao passo que FHC não teria criado nenhuma. Os mais desavisados passaram a informação adiante, porém uma rápida pesquisa pessoal mostrou que, das 18 universidades federais atribuídas ao PT, cerca de metade realmente foi criada por Lula e Dilma, porém as demais foram criadas, na verdade, em diferentes períodos dos séculos XIX e XX, sendo federalizadas principalmente a partir da década de 1940 (inclusive, três das universidades atribuídas ao PT foram criadas na gestão tucana). Também houve este movimento de propaganda enganosa, por exemplo, quando na última eleição presidencial o candidato tucano afirmou veementemente que Minas Gerais tinha a melhor educação fundamental do Brasil, apesar dos resultados do IDEB desmentirem o candidato. Os exemplos apresentados em nada intencionam desprestigiar um ou outro partido, mas servem como formas para pensarmos até onde os fatos históricos podem ser utilizados em nome de interesses daqueles que estão no poder.

As melhores vacinas contra a manipulação do passado pelos poderes vigente e oponente são o estudo da História, a pesquisa dos fatos e ideias e a busca pela máxima imparcialidade possível. A internet está entre nós para propagar conhecimentos, não devendo se prestar a ser instrumento do senso comum, da militância irrefletida e da ignorância política massificada.

 

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