O perigo do discurso único

07/02/2018 05:32

Nos "anos de chumbo" que o Brasil viveu sob uma ditadura militar, as universidades foram um dos focos de resistência contra o regime que impunha ideais carregados de censura ao que era considerado "subversivo", de exagerado nacionalismo e ufanismo ("Brasil: ame-o ou deixe-o") e de repressão ao livre pensamento e livre debate de ideias. Passado este período, porém, os meios universitários foram se cercando de um conjunto de discursos e ideias que, se antes combatiam um regime autoritário, agora caminharia para ser igualmente autoritário ao combater ideias que poderiam ser normalmente debatidas em um regime democrático. O fato é que o meio universitário é rondado constantemente pelo perigo de uma "ditadura do discurso único". E é sobre este perigo que vamos refletir brevemente, estando este texto direcionado ao público em geral.

Primeiramente, cabe ressaltar que a "ditadura do discurso único" não é uma exclusividade das direitas ou das esquerdas. Atualmente, a face desta "ditadura" que mais se evidencia é uma face de "esquerda", como vemos, por exemplo, quando socialistas se recusam a ouvir ou debater com quem não é socialista e taxa seus "oponentes" com adjetivos como "fascistas", "golpistas", "reaças", entre outros; no entanto, há também uma face de "direita" nesta ditadura (como, por exemplo, a proposta da "Escola sem Partido", conjunto de ideias que tem partido e se alinha a setores principalmente antissocialistas e conservadores). Nosso foco de reflexão será a face de "esquerda" da "ditadura do discurso único", pois é a que mais se evidencia especialmente após o regime ditatorial militar.

Experimente realizar um debate sobre a situação atual do Brasil, no campo social,  político e econômico, convidando para o debate figuras autodeclaradas de esquerda[1] e também figuras autodeclaradas de direita[2]. Muito provavelmente, os que se declaram à esquerda não aceitarão a presença dos de direita, alegando que as ideias destes são "excludentes", "fascistas", entre outros adjetivos. Ou ainda, experimente realizar um debate em que se convide quem acredita que o impeachment de Dilma Rousseff foi golpe e quem acredite que não foi golpe; neste caso, também haverá chiliques contra os que não associam o impeachment a um golpe. Tais situações exemplificadas aqui revelam uma tendência a se fazer aceitar, nem que seja goela abaixo, linhas de raciocínio político e contextual tidas como "óbvias" ("é óbvio que foi golpe", dizem os apoiadores de Lula e Dilma; "é óbvio que as cotas são necessárias", dizem os "especialistas" que apelam ao "lugar de fala"[3]). E quando se tratam certas questões como óbvias, fecham-se as possibilidades de debates pautados na diversidade de ideias e na pluralidade argumentativa, fazendo com que o espaço universitário (e outros espaços também) se torne palco de um único discurso. Aqui não se pretende entrar nos méritos do impeachment (se foi golpe ou não) e das cotas raciais (se são passíveis de concordância ou não), mas destacar o que foi dito na frase anterior: os espaços de diversidade de ideias e de debates pautados na pluralidade de argumentações estão se fechando diante da imposição de raciocínios elevados à categoria de "obviedades" e "certezas cristalinas".

Tal fechamento dos espaços de debates e imposição de linhas de raciocínio enfraquecem o mundo universitário naquilo que deveria resguardar com convicção, desenvolver ao máximo e prezar como um valor: a capacidade de conhecer e debater ideias sem medo de entrar em contato com pensamentos e concepções diferentes das próprias visões de mundo. Por exemplo, ao se pensar crises econômicas no Brasil, o fechamento em uma linha socialista de raciocínio e exclusão de quaisquer pontos de vista não-socialistas enfraquece o debate no qual ideias socialistas e liberais poderiam se contactar de forma séria através de pessoas que saibam argumentar com conhecimento e oferecer possibilidades de soluções plausíveis ao país; claro que também podemos pensar no fechamento daqueles que se encasulam em linhas de raciocínio antissocialistas, o que enfraquece o debate da mesma forma, mas lembremos aqui que este texto reflete sobre a face "esquerda" da ditadura do discurso único.

Ainda sobre o fechamento à pluralidade de ideias e tentativa de "sacralização" de um só conjunto de raciocínios, outro ponto que sai prejudicado é a liberdade de expressão. Por exemplo, alguém que não enxergue o impeachment de Dilma Rousseff como golpe tem dificuldades para expressar suas ideias, por mais bem elaboradas e embasadas que sejam, diante de um cenário em que a ideia de golpe está cristalizada nas mentes das militâncias. Ou ainda, alguém que defenda saídas liberais para a superação da crise econômica no Brasil terá dificuldades para expressar suas ideias, por mais embasadas e bem construídas que sejam, diante de um predomínio das saídas socialistas nas mentes das militâncias. Assim, o espaço universitário (e também outros espaços) perde ao ver diminuídas as chances de se promover a liberdade de expressão como um valor fundamental à democracia.

Para finalizar esta breve reflexão, consideremos as reações já existentes a esta face socialista da imposição de discursos em detrimento de outros. Uma das principais reações é o projeto "Escola sem Partido", que na verdade acaba agindo com o mesmo arsenal de ações que seus defensores atribuem às esquerdas: imposição de determinados raciocínios aliado a uma censura daquilo que é considerado inimigo ideológico (enquanto é possível ver socialistas que chamam de "fascismo" a tudo o que lhes é "estranho" e alheio, também é possível ver defensores do Escola sem Partido que chamam de "comunismo" a tudo o que lhes é "estranho" ou alheio). No final das contas, impera a intolerância (fruto do fechamento em seu próprio "mundinho de ideias"), a ignorância e desonestidade intelectual (divulgação desonesta de falsas notícias sem compromisso com a veracidade ou sem pesquisar as mesmas, por exemplo) e um exemplo negativo à sociedade, que continua agarrada ao senso comum, às falsas notícias, ao sensacionalismo e à cegueira das militâncias por não encontrar no meio universitário uma proximidade e um terreno fértil de ideias que lhe desenvolva o senso crítico, a capacidade de questionamento das ideias e contextos e a elevação qualitativa dos debates.



[1] Não há apenas uma "esquerda" atuando e pensando a política e a economia, embora haja determinados discursos comuns às esquerdas (por exemplo, a teórica valorização dos trabalhadores como protagonistas de transformações sociais, políticas, econômicas, culturais, etc).

[2] Não há apenas uma "direita" atuando e pensando a política e a economia, embora haja determinados discursos comuns às direitas (por exemplo, o antissocialismo).

[3] Trocando em miúdos, a ideia de "lugar de fala" refere-se à voz que deve ser dada a grupos que buscam protagonismo em suas lutas e à legitimidade desses grupos para falar de suas realidades; por exemplo, o negro tem o "lugar de fala" - ou seja, a legitimidade - para abordar o racismo e a mulher tem o "lugar de fala" para tratar do feminismo. O problema reside quando o conceito é enrijecido e se torna "lugar de cala", ou seja, não se reconhece legitimidade quando um branco fala de racismo ou um homem fala de feminismo, a despeito do conhecimento que é possível ter destes temas sem necessariamente ter vivido na pele os problemas que negros e mulheres enfrentam.

 

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