O riso de Aristóteles na obra de Umberto Eco

03/10/2016 23:10

Comunicação apresentada no VI Colóquio de Filosofia da Universidade Federal de Lavras - 29 de setembro de 2016

 

O RISO DE ARISTÓTELES NA OBRA DE UMBERTO ECO

Gustavo Uchôas Guimarães[1]

 

RESUMO

A obra de Umberto Eco O nome da rosa oferece um vislumbre para entender a visão aristotélica sobre o riso e como a Igreja medieval acolheu esta visão. Partindo deste pressuposto, questiona-se como O nome da rosa pode fazer vislumbrar esta visão e seus efeitos na mentalidade medieval. Buscando explorar e aprofundar um pouco mais esta questão, esta pesquisa lança mão da análise bibliográfica de historiadores e filósofos que analisam o que Aristóteles escreveu sobre o riso e sobre a mentalidade medieval a respeito deste tema, em especial as abordagens de Góes (2009), Alavarce (2009) e outros autores. O riso, defendido por Aristóteles como parte da essência do homem, gerou discussões em vários autores antigos e medievais, tendo muitos deles, principalmente cristãos, se colocado contra o riso e vendo-o como pecaminoso. Tais conflitos são visualizados na trama desenvolvida por Umberto Eco, que lhes confere importância ao colocá-los como o pivô de misteriosos fatos em um mosteiro. Revisitar o riso aristotélico sob a ótica de Eco promove um repensar das mentalidades do homem sobre a importância e as implicações de manifestações sentimentais por meios externos de acordo com culturas e grupos sociais ao longo dos tempos.

 

PALAVRAS-CHAVE: Riso. Umberto Eco. Mentalidades.

 

INTRODUÇÃO

 

Uma série de mortes em um mosteiro italiano, todas elas tratadas como obras demoníacas, é investigada por Guilherme de Baskerville, um franciscano que passava pelo mosteiro. A trama segue até vermos o envolvimento dos mortos com o segundo volume da obra Poética, de Aristóteles, que trataria da comédia. Esta descrição trata-se do livro O nome da rosa, do escritor italiano Umberto Eco, que viaja ao mundo medieval e pela forma como a filosofia era tratada nos meios cristãos, envolvidos com discussões teológicas e filosóficas das mais diversas correntes.

Para nossa época, o riso, um dos temas que aparecem em O nome da rosa, é algo tratado naturalmente, inclusive recomendado por grupos diversos, desde cientistas até os gurus da autoajuda. No entanto, pensar o riso na Idade Média[1] é considerar o caráter pecaminoso que ele ganhou nos discursos e mentalidades cristãs europeias.

Baseado em uma análise bibliográfica sobre o tema do riso, vamos contextualizá-lo na mentalidade medieval e explorar os conflitos que surgem entre o discurso medieval sobre o riso e a obra Poética, de Aristóteles, cujo segundo volume (perdido) faria uma apologia do riso e de suas virtudes para o ser humano. Para isto, o principal embasamento teórico encontra-se nos trabalhos de Góes (2009) e Alavarce (2009), que analisam a obra Poética e o livro O nome da rosa, tendo também como referências as contribuições e análises de Macedo (2000), Minois (2003) e Alberti (1999), entre outros autores.

Antes de prosseguir, porém, é preciso contextualizar e entender um pouco do que Aristóteles dizia sobre o riso. No livro Isagoge, Porfírio[2] (1965) explora o pensamento aristotélico sobre o que seria próprio do homem, atribuindo ao riso este caráter de próprio do ser humano. Porfírio diz que "ao menos se diz que ele é capaz de rir, não porque ri sempre, mas porque é capaz de fazê-lo naturalmente; é uma qualidade que faz sempre parte de sua natureza, como para o cavalo a faculdade de relinchar" (1965, p. 18-23). Góes (2009, p. 230) destaca que Aristóteles distinguia o riso como elemento de diferenciação do homem em relação aos outros animais e ainda atribuía à capacidade de rir o fato de o homem ser o único animal a sentir cócegas. E em O nome da rosa, vemos o personagem Guilherme de Baskerville destacar que Aristóteles não escreveria um livro inteiro (o volume II da Poética) se não desse importância ao riso como algo determinado pela natureza humana (Eco, 1989, p. 120; Góes, 2009, p. 233). Alavarce (2009, p. 73) cita Alberti (ver nota de rodapé nº 8) ao afirmar a importância de Aristóteles ao definir o cômico como uma deformidade humana que não gera dor nem destruição. Ainda em Alavarce (2009, p. 74) lemos que Aristóteles associa o riso àquilo que é agradável e prazeroso.

Esta análise bibliográfica parte da problemática de se aprofundar o estudo sobre o riso em Umberto Eco e oferecer maiores possibilidades de se discutir a externalização de sentimentos ao longo da História. No primeiro capítulo, intitulado O nome da rosa, será feita uma breve abordagem da trama de Umberto Eco. No segundo capítulo, O riso de Aristóteles, será feita uma análise de como o riso aparece em O nome da rosa, com o conflito de argumentos entre os personagens da trama. No terceiro capítulo, intitulado Recepção do riso, será feita uma reflexão sobre a forma como a abordagem aristotélica do riso foi recebida no período medieval. Por fim, nas considerações finais, se arrematará o texto com reflexões a respeito da relação entre o homem e o riso.

 

1. O NOME DA ROSA

 

A obra O nome da rosa, de Umberto Eco, foi lançada em 1980 na Itália. O título da obra refere-se a uma expressão medieval que significava o poder infinito das palavras, segundo Rosa (2010).

Em O nome da rosa, vemos o personagem principal, o frei Guilherme de Baskerville, chegar a um mosteiro italiano acompanhado do jovem Adso de Melk, estando este mosteiro envolto em uma série de misteriosas mortes. A investigação das mortes leva Guilherme de Baskerville a se confrontar até mesmo com um poderoso nome da Inquisição, Bernardo Gui, além de colocar Guilherme em um complexo relacionamento com a biblioteca do mosteiro, onde encontrava-se a chave do entendimento dos assassinatos: o livro II da Poética de Aristóteles, dedicado ao cômico. Este livro ajuda Guilherme a resolver o mistério das mortes dos monges.

Além da trama em torno das mortes e do livro aristotélico, O nome da rosa explora um conflito dentro da Igreja, principalmente envolvendo uma discussão sobre a pobreza de Jesus Cristo, sendo assim uma rica obra para pensarmos e imaginarmos o contexto medieval europeu no século XIV (período em que ocorre a narrativa de Umberto Eco).

 

2. O RISO DE ARISTÓTELES

 

Em O nome da rosa, o riso é tratado com a erudição característica de Umberto Eco. Góes (2009) aborda este aspecto destacando o fato de que Eco fala do riso mencionando ditos de vários escritores do mundo antigo e medieval, como Basílio de Cesareia[3], Clemente de Alexandria[4] e João Crisóstomo[5], que, na maioria das vezes, declaravam-se contrários ao riso.

Duas figuras em O nome da rosa se destacam no debate sobre o riso conforme exposto na obra aristotélica: de um lado, Guilherme de Baskerville, que usa a argumentação aristotélica para afirmar que o riso está na essência do homem; de outro lado, Jorge de Burgos, o bibliotecário cego, para quem o riso é pecaminoso por espantar o temor e assim gerar dúvidas no ser humano.

Guilherme e Jorge travam uma conversa sobre o riso em um ambiente próximo a biblioteca do mosteiro. Jorge repreende monges que se puseram a rir de gravuras que haviam sido feitas por Adelmo de Otranto, a primeira vítima das misteriosas mortes no mosteiro. O bibliotecário diz severamente: "Verba vana aut risui apta non loqui" ("Não falar palavras frívolas ou aptas a excitar o riso")[6].

Diante do questionamento de Guilherme naquele momento e em outras situações ao longo de O nome da rosa, o bibliotecário expõe seu pensamento sobre o riso e destaca que seu problema com o livro de Aristóteles sobre a comédia estava no fato de o livro ser filosófico, chegando a dizer: "Porque era do Filósofo. Cada livro daquele homem destruiu uma parte da sabedoria que a cristandade acumulara no correr dos séculos" (Eco, 1989, p. 487). Jorge ainda prossegue dizendo que sua tarefa de esconder o livro aristotélico sobre a comédia tinha uma justificativa: "deste livro poderia partir a fagulha luciferina que atearia no mundo inteiro um novo incêndio: e o riso seria designado como arte nova" (Eco, 1989, p. 488).

 

3. RECEPÇÃO DO RISO

 

Umberto Eco, em O nome da rosa, coloca o livro II da Poética de Aristóteles como sendo uma obra muito bem guardada e que deveria se manter escondida devido a sua "periculosidade" aos monges (e às pessoas em geral). Na verdade, o que Eco quer mostrar é a forma como o riso, defendido por Aristóteles, foi mal recebido pelo homem católico europeu medieval, sendo condenado por vários escritores cristãos.

Góes (2009, p. 217-218) fala desta recepção do riso evocando o personagem Jorge de Burgos, para quem o riso nada mais seria do que uma forma de desacreditar a Igreja pois mataria o temor e, assim, também mataria a fé, gerando dúvidas. Por outro lado, o mesmo autor menciona um movimento, a partir do século XII, de valorização do riso como forma de favorecer a transmissão da mensagem cristã, ridicularizando os pecadores e suas atitudes pecaminosas. Este confronto de ideias marcou o período medieval pois referia-se a algo inerente ao homem, revelando como o ser humano lida com expressões externas de sentimentos ao longo da História.

Na fala de Jorge de Burgos onde ele diz ter sido merecida a morte de Adelmo por ter desenhado coisas risíveis, podemos ver um extremo de conservadorismo em relação ao riso, chegando a atribuir castigos divinos a quem tivesse atitudes cômicas. Inclusive, Jorge invoca a ideia de que nem Jesus Cristo se serviu do riso para ensinar os discípulos. Góes (2009, p. 220) ainda destaca que Jorge vai mais longe utilizando pensamento aristotélico para rebater Guilherme de Baskerville, dizendo que nem tudo o que é parte do homem é necessariamente bom.

Macedo (2000, p. 250-251) expõe que o riso na Idade Média ganha caráter demoníaco na medida em que é associado às fraquezas do corpo, sendo assim expurgado da vida do cristão medieval. No entanto, mesmo a Igreja reconhece que o riso jamais seria extinto, e por isso sua teologia destaca os conceitos de laetitia e gaudum spirituale como princípios antagônicos (Góes, 2009, p. 227), sendo o primeiro uma alegria "mundana" e o segundo uma alegria espiritual que poderia se manifestar nesta vida mediante a contemplação das obras de Deus na criação[7].

Minois (2003, p. 112), falando sobre o riso no período medieval, aponta a associação que se fazia entre o riso e o pecado original, chegando ao ponto de termos o homem medieval pensando o riso como uma "desforra do diabo, que revela ao homem que ele não é nada".

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Atualmente, ainda há quem defenda um controle rígido sobre o riso. O site Got Questions[8], por exemplo, ao falar de uma prática de riso incontrolável que ocorre em certos meios evangélicos, afirma que o "riso é uma resposta emocional não confiável" e "não realiza nada de útil", além de destacar que "espasmos incontroláveis de emoção são contrários à natureza do Espírito Santo" (para afirmar que o tal fenômeno evangélico não seria obra divina). O mesmo site chega a declarar, à semelhança do bibliotecário de O nome da rosa, que "não havia ninguém na Bíblia mais cheio do Espírito Santo que o próprio Jesus, e nenhuma vez a Bíblia grava-o rindo".

Esta mentalidade sobre o riso sobrevive em nossos dias junto com pensamentos totalmente opostos, nos quais o riso é valorizado como meio de expressão da felicidade e da autoestima, tendendo a fazer bem ao ser humano, como atesta Ferreira (2013) em sua argumentação sobre os benefícios do riso no combate ao stress e na prevenção de doenças.

Vimos que o riso, na Idade Média, era visto como uma forma de "indisciplina espiritual" (Góes, 2009, p. 228), sendo, portanto, passível de condenação aquele que se desse às atitudes cômicas, desrespeitando seu foco na contemplação de Deus. Em O nome da rosa, esta mentalidade sobre o riso fica latente nas falas do personagem Jorge de Burgos, principalmente em seus diálogos com Guilherme de Baskerville.

Contextualizar o riso no período medieval, tendo Aristóteles como pontapé inicial da análise dentro da trama de O nome da rosa, oferece-nos possibilidades de pensar também o que hoje temos como visão das manifestações sentimentais e comportamentais através do riso.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

ALAVARCE, Camila da Silva. O riso. In: ALAVARCE, Camila da Silva. A ironia e suas refrações: um estudo sobre a dissonância na paródia e no riso [online]. São Paulo: Editora UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2009. Disponível em: <https://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/109119/ISBN9788579830259.pdf?sequence=2> Acesso em: 20 ago.2016.

 

ECO, Umberto. O nome da rosa. Tradução de Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade. São Paulo: Circulo do Livro, 1989. p. 94-103.

 

FERREIRA, Ana Paula. Conheça a risoterapia. Disponível em: <https://revistavivasaude.uol.com.br/bem-estar/conheca-a-risoterapia/290/#> Acesso em: 25 set.2016. Publicado em: 17 mar.2013.

 

GÓES, Paulo de. O problema do riso em O Nome da Rosa, de Umberto Eco. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v. 21, n. 28, p. 213-240, jan./jun.2009. Disponível em: <www2.pucpr.br/reol/index.php/rf?dd99=pdf&dd1=3239> Acesso em: 20 ago.2016.

 

GOT QUESTIONS. O que é o riso santo? É rir incontrolavelmente um dom do Espírito Santo? Como é o santo riso um exemplo de autocontrole? Disponível em: <https://gotquestions.org/Portugues/riso-santo.html> Acesso em: 15 set.2016.

 

MACEDO, José Rivair de. Riso, cultura e sociedade na Idade Média. Porto Alegre: Ed. da UFRGS; São Paulo: Ed. da Unesp, 2000.

 

MINOIS, Georges. História do riso e do escárnio. Trad. Maria Helena O. Ortiz Assumpção. São Paulo: Editora UNESP, 2003.

 

NOME da rosa. Produção de Jean-Jaques Annaud. São Paulo: Tw Vídeo distribuidora, 1986. 1 Videocassete (130 min.): VHS, Ntsc, son., color. Legendado. Port.

 

PORFÍRIO. Isagoge. São Paulo: Maltese, 1965.

 

ROSA, Paulo Fernando Zaganin. Algumas considerações sobre a adaptação do romance O Nome da Rosa para o cinema. Anais do X Seminário de Estudos Literários, UNESP / Assis, 2010. Disponível em: <https://sgcd.assis.unesp.br/Home/PosGraduacao/Letras/SEL/anais_2010/paulofernando.pdf> Acesso em: 07 set.2016.

 



[1] Neste texto, vamos tratar o termo Idade Média referindo-se ao que foi delimitado pela historiografia tradicional, ou seja, o período da história da Europa Ocidental que vai de 476 (fim do Império Romano do Ocidente) até 1453 (fim do Império Romano do Oriente ou Império Bizantino).

 

[2] Para saber mais sobre Porfírio (232-304): <https://educacao.uol.com.br/biografias/porfirio.htm>

[3] Em Góes (2009, p. 226) lemos que Basílio de Cesareia condenava o riso como algo a ser castigado por Deus.

 

[4] Segundo Góes (2009, p. 224-225), Clemente de Alexandria aceitava um riso discreto, mas considerava o riso descontrolado como atitude de prostitutas.

 

[5] Góes (2009, p. 227) menciona o pensamento de João Crisóstomo segundo o qual o choro seria uma via de purificação do homem, devendo o riso ter lugar apenas na Vida Eterna.

 

[6] Eco, 1989, p. 86.

[7] Aqui, Góes (2009) cita: ALBERTI, Verena. O riso e o risível na história do pensamento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; FGV, 1999. Página 69.

 

[8] O Got Questions é um site especializado em responder questionamentos a respeito da Bíblia. Em sua página de apresentação, os organizadores do site assim se definem: "Nós somos cristãos, protestantes, conservadores, evangélicos, fundamentalistas e não-denominacionais".

 

 

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