Opinião sobre o filme Os Dez Mandamentos

21/02/2016 01:10

Quem trabalha com a História ou áreas afins normalmente tem um olhar mais crítico em relação às coisas ao seu redor e procura sempre (ossos do ofício) analisar tais coisas com uma visão que vá além do que os demais viram. Foi com este olhar que assisti ao tão alardeado filme Os Dez Mandamentos, produção baseada na mais recente novela de teor bíblico da Record.

Na verdade, dizer que o filme foi uma “produção baseada” na novela é um tanto quanto exagerado; o que foi visto é uma produção novelística de 180 capítulos editada e condensada em apenas duas horas de filme, com a diferença de que as cenas da novela foram transportadas ao filme como sendo um relato de Josué aos seus soldados antes de uma batalha noturna (estas cenas de Josué falando aos seus soldados são as tais “cenas inéditas” propagandeadas pela Record). E o tal “final surpreendente” tão destacado pela emissora de Edir Macedo nada mais é do que a morte dos que fizeram o bezerro de ouro (uma continuação da última cena da novela) e o grito de guerra de Josué após terminar seu relato e partir com os soldados para a conquista da Terra Prometida. Não me preocupo em contar o final do filme, pois o spoiler na verdade já foi feito há quase 3000 anos (basta ler Êxodo 32,25-29 e Josué 1,10-11).

O filme Os Dez Mandamentos repete um antigo hábito do cinema: representar os egípcios como se tivessem sido brancos. Há uma grande discussão em torno desta temática, com aqueles que defendem a ideia de egípcios negros e os que admitem a ideia de egípcios brancos. Nunes (2014), por exemplo, cita o texto A origem dos antigos egípcios, de autoria de Cheikh Anta Diop e que compõe a coleção História Geral da África (UNESCO); no referido texto, Diop enfatiza as representações dos antigos egípcios mostrando a si mesmos como um povo negro. Já Vilela (2005) destaca que o argumento de que os egípcios eram negros nada mais seria do que uma “confusão com os núbios” (povo negro que vivia ao sul do Egito) e que na verdade os egípcios eram “brancos de pele morena”. De qualquer forma, a representação de egípcios brancos é muito recorrente no cinema, apesar das evidências de que eram negros (por exemplo, as muitas representações imagéticas em túmulos e monumentos), o que faz a produção da Record perpetuar uma ideia que nasceu da antiga mentalidade que atribuía superioridade intelectual e social aos brancos.

É também pertinente trazer a este texto o teor da crítica que a arqueóloga Márcia Jamille, especializada em Antigo Egito, faz à novela Os Dez Mandamentos, visto que os aspectos criticados se repetiram no filme. Jamille (2015) enfatiza que muita coisa apresentada na novela “não corresponde com a realidade do Egito faraônico”. Dentre os detalhes que foram repetidos no filme e que não correspondem à história egípcia, podemos citar: a menção ao casamento de Ramsés com Nefertari após a sua coroação como faraó (na verdade, Ramsés II já era casado com Nefertari e tinha filhos com ela ao ser coroado rei do Egito) e os cortes e estilos de vestuário que não existiam no antigo Egito (em especial nos trajes femininos, nas armaduras dos soldados e na capa do faraó).

Além destes detalhes, também é interessante observar que, para um estudioso da Bíblia e da tradição judaico-cristã, algumas falas do filme soam anacrônicas, isto é, fora do contexto temporal. Por exemplo: seria impossível (ou no mínimo improvável) ouvir Moisés dizendo que estava a escrever relatos em língua hebraica, visto que o texto em hebraico mais antigo já descoberto até hoje é o chamado Calendário de Gezer, um calendário agrícola datado do século X a.C. (cerca de 300 anos após a provável época em que Moisés viveu), além de podermos considerar bastante improvável que um príncipe egípcio tivesse aprendido a escrita hebraica enquanto os próprios hebreus estavam há séculos cercados de cultura egípcia (o argumento de que Moisés pudesse ter aprendido o hebraico em seu exílio entre os midianitas ainda seria fraco se considerarmos que o povo midianita estava cercado de povos de línguas cananeias).

Por fim, todos estes argumentos e opiniões em relação ao filme Os Dez Mandamentos poderiam receber contra-argumentações baseadas na ideia de que se trata apenas de uma obra de entretenimento. Mesmo assim, é importante enfatizar a grande responsabilidade que um autor de filmes ou novelas tem ao elaborar uma produção de época; esta responsabilidade passa por uma busca pela máxima fidelidade e verossimilhança possíveis em relação a aspectos como vestuários, paisagens geográficas, referências históricas, entre outros, ainda mais quando se inclui na produção personagens que existiram de fato (como os faraós Seti I e Ramsés II e as rainhas Tuya e Nefertari em Os Dez Mandamentos). O caráter de entretenimento e o direcionamento para as massas populares não devem ser sinônimos de “carta branca” para deslizes em produções de época, mesmo que em nome de uma pregação da fé e da mensagem divina.

 

REFERÊNCIAS:

JAMILLE, Márcia. Comentários – Novela Os Dez Mandamentos. Disponível em: https://arqueologiaegipcia.com.br/2015/06/28/comentarios-novela-os-10-mandamentos-brasil/ Acesso em: 20/02/2016. Publicado em: 28/06/2015.

NUNES, Charô. Um Egito negro incomoda muita gente. Disponível em: https://www.geledes.org.br/um-egito-negro-incomoda-muita-gente/ Acesso em: 20/02/2016. Publicado em: 12/08/2014.

SOUZA, Elias Brasil de; LEAL, Jônatas de Mattos. O Calendário de Gezer e suas implicações na compreensão do texto bíblico. Disponível em: https://www.seer-adventista.com.br/ojs/index.php/hermeneutica/article/view/212/207 Acesso em: 21/02/2016. Publicado em: 2008.

VILELA, Túlio. Egito antigo: verdades e mentiras sobre a civilização multimilenar. Disponível em: https://educacao.uol.com.br/disciplinas/historia/egito-antigo-verdades-e-mentiras-sobre-a-civilizacao-multimilenar.htm Acesso em: 20/02/2016. Publicado em: 31/07/2005.

 

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