(Pre)Ocupações

01/11/2016 02:25

A onda de ocupações de escolas e universidades no Brasil vem aumentando consideravelmente, em especial após a aprovação, na Câmara dos Deputados, da PEC 241/2016 (no Senado, será votada como PEC 55/2016). Além disso, há também uma indignação com relação à MP 746/2016, que reforma o Ensino Médio.

Antes de mais nada, é importante salientar que este autor apoia o movimento de ocupações. Estas são um legítimo instrumento democrático de mostrar indignação diante de situações como uma reforma do Ensino Médio feita por Medida Provisória e uma PEC que não foi discutida com a sociedade brasileira e que está sendo votada "a toque de caixa" sob a pressão de um governo que, como os anteriores, mais atende as demandas de grupos econômicos do que do povo brasileiro. Neste texto, vamos pensar um pouco nas bases que legitimam as ocupações, mas vamos focar principalmente nas preocupações em torno deste movimento.

 

1. Bases de legitimação

Em primeiro lugar, há que se considerar que as ocupações não são feitas por "vagabundos", como vêm sendo taxados os estudantes por alguns dos críticos das ocupações. É tradicional na cultura política brasileira desqualificar o oponente atribuindo-lhe pechas ao invés de discutir as motivações e as ideias. Esta subcultura rasteira é comum tanto nas direitas quanto nas esquerdas, havendo de todos os lados indivíduos que, para compensar a falta de argumentos minimamente consistentes, recorrem às ofensas e às desqualificações pessoais.

Em segundo lugar, é possível afirmar que a escola é um espaço político, ou seja, para muito além das tradicionais aulas com organização em fileiras e trocas de professores que se alternam no estudo de livros didáticos e outras fontes e métodos, a escola é espaço para discussão política, debate de ideias, manifestações pacíficas daquilo que os alunos pensam e sentem. O interior da escola carrega em si o conflito entre os ideais daqueles que a veem como espaço para habilitar os trabalhadores ao mundo do trabalho e aqueles que a percebem como meio de desenvolvimento de potencialidades e como instrumento de formação integral, contemplando os aspectos social, cultural, pessoal, político, etc[1]. A própria discussão destas possíveis (e não necessariamente inconciliáveis) finalidades da escola é um ato político carregado de ideologias e de visões de mundo e de sociedade que, trazidos para dentro da escola, fazem desta um espaço político.

A escola também é um espaço democrático, devendo lidar com novas situações que desafiam especialmente os gestores[2]. As ocupações de escolas apontam para a realidade atual no qual jovens percebem no espaço escolar uma oportunidade de reivindicar por demandas[3], o que é um exercício de democracia e cidadania integrante da formação do indivíduo não só enquanto aluno, mas enquanto pessoa. Este exercício de democracia e cidadania obviamente gera resistências até mesmo entre estudantes, o que mostra a capacidade democrática de abarcar ideias diferentes e desafiar a sociedade para que possa gerir os conflitos de ideias sem recorrer a animosidades, clichês, bordões, desqualificações pessoais, xingamentos, etc.

Até aqui, temos alguns argumentos pela legitimidade das ocupações, considerando também que tais movimentos obrigatoriamente devem ser pacíficos, ter acompanhamento do Conselho Tutelar e primar por uma organização baseada na formação de comissões de alunos (como, por exemplo, o grupo de segurança que ajudará a garantir a preservação do patrimônio público) e na elaboração de atividades como apresentações artísticas, "aulões", debates, etc.[4], mostrando aos críticos que tais movimentos não são desordenados, baderneiros nem arruaceiros.

Antes de passarmos à parte de preocupações, é necessário trazer à tona um argumento de quem tem sido contrário às ocupações, alegando que isto tira dos estudantes o foco de sua preparação para o mercado de trabalho e para avaliações como o ENEM. Sensatamente, não podemos desprezar o caráter da escola como formadora para o mercado de trabalho, mas também seria insuficiente desconsiderar por completo o caráter da escola como formadora integral de aspectos culturais, políticos, sociais, entre outros. A preparação para o ENEM e para o mercado de trabalho não se prejudica naqueles estudantes que mantém hábitos de estudo ou, no mínimo, procuram se instrumentalizar com conhecimentos básicos (este assunto será melhor abordado na parte de preocupações). Além disso, a preparação para provas e para o mercado não exclui a possibilidade de manifestação política e prática democrática e cidadã.

 

2. Preocupações:

Após uma breve defesa do ponto de vista da legitimidade das ocupações, faz-se necessária uma reflexão sobre preocupações que precisam povoar a mente de quem organiza e de quem participa destes movimentos.

Em primeiro lugar, há que se considerar que caráter político não é sinônimo de caráter partidário. As ocupações devem ter um caráter político, mesmo porque este é o caráter da escola enquanto espaço democrático de debates de ideias. No entanto, há de se ver com preocupação as movimentações partidárias em torno das ocupações. Na verdade, esta é uma preocupação não só das ocupações de escolas, mas de quaisquer mobilizações populares que tenham bases ideológicas de esquerdas ou de direitas. Basta considerarmos como exemplos as evidências de participação do PMDB, PSDB, Solidariedade e Democratas como financiadores e apoiadores do Movimento Brasil Livre (MBL)[5] ou ainda as presenças de partidos políticos nas manifestações pró ou contra o impeachment de Dilma Rousseff. Tais exemplos devem nos fazer refletir sobre até que ponto é "saudável" o apoio às ocupações da parte de pessoas ligadas ao PT, PSTU, PCdoB e outros partidos.

Em segundo lugar, é preciso, mesmo que isto contrarie pessoas ligadas às esquerdas e aos movimentos de ocupações, ponderar sobre as posições da União Brasileira de Estudantes Secundaristas (UBES) em relação a pautas que são defendidas pelos estudantes nas ocupações. Páginas da internet ligadas a grupos de direita vêm destacando o apoio que a UBES deu à reforma no Ensino Médio enquanto o PT estava no poder[6] (ao contrário da posição atual, em que a UBES se mostra desfavorável à reforma proposta pelo governo Michel Temer). Sendo isto um fato, seria importante um comunicado da própria UBES explicando suas posições e as razões para mudar rumos de um governo para outro; ou se a UBES considerar esta polêmica uma distorção interpretativa para confundir o público, ainda assim cabe-lhe a tarefa de se expressar sobre o assunto. Esta polêmica em torno da UBES não deslegitima o movimento de ocupações, no entanto faz-nos retornar ao ponto de reflexão sobre o caráter partidário que perigosamente pode ser assumido ou que pode influenciar as decisões e ações de um grupo ou movimento.

Uma terceira preocupação tange às programações que os alunos adotam nas ocupações. É muito importante que tais movimentos pensem que suas atividades devem promover pleno diálogo com a comunidade escolar em um todo e que primem pela formação cidadã tanto na teoria como na prática. A organização das ocupações precisa ter sempre em mente uma abertura a discussões que nem sempre se encaixem com o pensamento da maioria dos ocupantes. Os "aulões" devem ser pensados como momentos de real formação política, cidadã e democrática.

A próxima preocupação tem a ver com aspectos culturais intrínsecos na sociedade brasileira. Ao final do capítulo sobre as bases de legitimação, tocou-se no ponto da necessidade de hábito de estudo e de uma instrumentalização mínima do aluno com conhecimentos básicos ao seu processo específico de formação intelectual e acadêmica. É cultural entre muitos alunos brasileiros deixar para rever conteúdos faltando pouco tempo para as provas (isto quando revê conteúdos) ou ainda ter a mentalidade de que estudar conteúdos visa apenas a realização de provas (ao contrário do ideal de que conteúdos aprendidos são conhecimentos adquiridos para a vida em seus vários aspectos). O processo de ocupações, com suas atividades voltadas à cidadania e à formação política, precisa também utilizar de seu poder de mobilização para discutir e desconstruir esta cultura estudantil, incutindo nos ocupantes uma reflexão que possibilite-os repensar suas próprias visões em relação aos estudos e aos comportamentos dentro do ambiente escolar, para que as ocupações não percam sua credibilidade e confiabilidade por causa de alunos que participam motivados por um "espírito de oba-oba" e sem consciência da importância dos estudos como fator de transformação pessoal e social e de formação integral do ser. Assim, as ocupações, além do aspecto político, têm a oportunidade de se fortalecer em seu aspecto pedagógico e em seu papel transformador de culturas e mentalidades, apontando para os alunos que a prática política e democrática anda de mãos dadas com a valorização dos estudos como instrumento de mobilização, autotransformação, mudança social e formação integral.

 

Apresentada esta breve reflexão sobre as ocupações e as necessárias preocupações em torno do movimento, espera-se despertar e estender um debate que realmente contribua para que as visões sobre o movimento, mesmo que contrárias em suas ideias, não resultem em mais "espetáculos" de embates verbais vazios, usos de clichês e bordões, ofensas pessoais e argumentações baseadas no senso comum.



[1] OLIVEIRA, João Ferreira de; MORAES, Karine Nunes de; DOURADO, Luiz Fernandes. Função social da educação e da escola. Disponível em: <https://escoladegestores.mec.gov.br/site/4-sala_politica_gestao_escolar/pdf/saibamais_8.pdf> Acesso em: 01 nov.2016.

 

[2] ELOY, Denise. As ocupações estudantis e a gestão democrática no Ensino Médio. Disponível em: <https://gestaoescolar.org.br/dia-a-dia-na-educacao/ensino-medio-ocupacao-estudantes-gestao-democratica-954381.shtml> Acesso em: 01 nov.2016. Publicado em: 10 jun.2016.

 

[3] MINISTÉRIO PÚBLICO DO PARANÁ. Ofício nº 569/2016. Disponível em: <https://www.crianca.mppr.mp.br/modules/noticias/article.php?storyid=1610> Acesso em: 01 nov.2016. Publicado em: 07 out.2016.

[4] UNIÃO BRASILEIRA DOS ESTUDANTES SECUNDARISTAS (UBES). Saiba como ocupar a sua escola. Disponível em: <https://ubes.org.br/2015/saiba-como-ocupar-a-sua-escola/> Acesso em: 01 nov.2016. Publicado em: 19 nov.2015.

 

[5] LOPES, Pedro; SEGALLA, Vinícius. Áudios mostram que partidos financiaram MBL em atos pró-impeachment. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2016/05/27/maquina-de-partidos-foi-utilizada-em-atos-pro-impeachment-diz-lider-do-mbl.htm> Acesso em: 01 nov.2016. Publicado em: 27 mai.2016.

 

[6] IMPLICANTE. Recordar é viver: na gestão de Dilma Rousseff, a UBES defendia a reforma do Ensino Médio. Disponível em: <https://www.implicante.org/noticias/recordar-e-viver-na-gestao-de-dilma-rousseff-ubes-defendia-reforma-do-ensino-medio/> Acesso em: 01 nov.2016. Publicado em: 07 out.2016.

JORNALIVRE. Hipocrisia: UBES defendeu reforma do ensino médio quando a proposta veio do governo Dilma. Disponível em: <https://jornalivre.com/2016/10/27/hipocrisia-ubes-defendeu-reforma-do-ensino-medio-quando-a-proposta-veio-do-governo-dilma/> Acesso em: 01 nov.2016. Publicado em: 27 out.2016.

 

 

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