Professor, você é ateu?

14/04/2018 15:05

A pergunta que intitula este texto foi feita a mim outro dia por um aluno do Ensino Médio. E qual não foi a surpresa dele quando eu disse: "Sou católico"! O que motivou a pergunta foi a postura que tenho como historiador lecionando a alunos de escola pública, e é sobre esta postura que compartilharei este breve texto aos amigos e colegas historiadores.

Os currículos de História para o 6º ano do Ensino Fundamental e 1º ano do Ensino Médio normalmente preveem o ensino da História da Antiguidade Oriental (Mesopotâmia, Egito, Fenícia, Israel, Pérsia, Índia e China). Em especial no caso de Israel (e eventualmente quando se estuda Mesopotâmia, Egito, Fenícia e Pérsia), não se escapa de utilizar a Bíblia como documento histórico (a mesma também acaba sendo utilizada ou mencionada quando se estuda, por exemplo, o surgimento do islamismo, que teve o cristianismo e o judaísmo como bases doutrinais, e as ideias por trás de eventos como o surgimento do cristianismo, o avanço da Igreja na colonização da América, a Reforma Protestante, etc).

Já sabendo da diversidade de crenças religiosas que normalmente encontro nas turmas onde leciono e ciente de que a maior parte desta diversidade é de igrejas cristãs (católica ou evangélicas), sempre lembro aos meus alunos que menciono a Bíblia em sala de aula apenas como documento histórico (ou seja, reflexo e produto das crenças e contextos de quem escreveu o livro e das épocas em que foi escrito) e que a sala de aula, nas aulas de História (aliás, em qualquer aula), não é espaço para debater a validade de dogmas ou a veracidade de relatos bíblicos (isto deve ser debatido nas igrejas, com auxílio de líderes religiosos, ou em alguma conversa informal fora do espaço e do horário de aulas).

Seguindo o que informo aos alunos (conforme o parágrafo anterior), tenho uma postura em relação ao trato com a Bíblia em sala de aula como quem não fosse de religião alguma, abordando os relatos bíblicos dentro do contexto do que é ensinado em sala de aula e sempre utilizando expressões como: "De acordo com o relato bíblico...", "Baseado no relato bíblico, os judeus / cristãos acreditam que...", "O relato bíblico é assim interpretado por...", "Os muçulmanos interpretam este relato de tal jeito, embora cristãos e judeus interpretem de tal jeito...". Esta postura, acredito eu, coloca a Bíblia como o que ela deve ser em uma sala de aula numa escola pública: um documento histórico (enquanto produto de um contexto social e cultural) a ser mencionado e trabalhado dentro de um contexto pedagógico no qual seja respeitada a diversidade de crenças religiosas (e também a opção pela não-crença).

Mesmo com todo este cuidado na prática em sala de aula, é preciso ter um "jogo de cintura" para situações nas quais queiram se levantar questionamentos de ordem dogmática ou teológica. Quando ministro aulas sobre a Mesopotâmia, por exemplo, costumo contar aos alunos o relato da Epopeia de Gilgamesh; toda vez que chego à parte da Epopeia que relata o dilúvio, alunos me falam: "Isto é parecido com o que está na Bíblia" e alguns chegam até a dizer: "Este livro copiou da Bíblia". E estes últimos ficam surpresos quando falo que as primeiras versões da Epopeia são 1500 anos mais antigas que os primeiros escritos bíblicos! Já ouve casos em que, após esta surpresa, alunos quiseram me questionar sobre a veracidade da história de Noé e a falsidade da história de Ziusudra (Epopeia de Gilgamesh), visto que, segundo os alunos questionadores, o relato sobre Noé é "Palavra de Deus" e sobre Ziusudra menciona muitos "falsos deuses". Limito-me apenas a dizer que questões de ordem doutrinária ou dogmática deveriam ser perguntadas a um teólogo (seja ele de que religião for) e que crença religiosa (ou a ausência dela) é algo que cada um deve ter para si mesmo. A mesma resposta eu dou quando, ao ensinar sobre Reforma Protestante, explico as diferenças entre católicos, protestantes, evangélicos, ortodoxos e cristãos independentes (e sempre tem algum aluno para questionar qual "corrente" está certa em suas doutrinas; ou pior, às vezes aparece algum aluno taxando a própria crença como certa porque "está na Bíblia"). Também a mesma resposta é dada quando, ao ensinar sobre o islamismo, explico aos alunos as semelhanças e diferenças entre esta religião e o cristianismo e judaísmo e algum aluno me questiona quem está correto ou então faz comentários taxativos sobre uma pretensa veracidade de suas crenças em detrimento de uma suposta falsidade das demais. Em todas as situações relatadas, além da resposta já mencionada acima, também procuro abordar a necessidade de se respeitar e conviver bem com aqueles que têm crenças diferentes, pois a sociedade atual é plural em suas concepções e vivemos em um país no qual as leis, ao menos em teoria, garantem as liberdades de crença, expressão e pensamento. Defender a liberdade de crença para todos (e também de não crer em nada) é a melhor garantia para que a própria crença não seja perseguida, discriminada e punida por aqueles que se atribuem a pecha de "religião verdadeira" ou "crença superior".

Por causa de todo este cuidado e estas formas de tratar em sala de aula obras consideradas "sagradas" por membros de religiões diversas, já fui questionado por alunos: "Professor, você é ateu?" A quem me perguntou estando sozinho, respondi que sou católico. E em outra situação na qual fui questionado na frente de uma turma inteira, completei: "Aqui dentro da sala, sou historiador".

 

 

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