REFLEXÕES SOBRE HISTORIADORES E JORNALISTAS
Quando se está em isolamento social, mesmo trabalhando em casa[1], acaba-se tendo uma flexibilidade de tempo que permite mais aprofundamento em leituras, estudos e reflexões que, em outros contextos, não dariam para ser feitos. Neste sentido, acompanhar as notícias sobre a pandemia e, ao mesmo tempo, o desenrolar da política brasileira, além de ler e estudar diversos temas históricos e historiográficos (seja para o preparo de aulas ou para outras produções), oferece algumas possibilidades de perceber aproximações entre o trabalho do jornalista e o trabalho do historiador. Claramente, são profissões com métodos diferentes, linguajares próprios e características técnicas peculiares a cada área, mas, ainda assim, alguns pontos podem ser analisados como aproximações e semelhanças entre a História e o Jornalismo. E para refletir sobre isto, vamos partir de duas frases. A primeira delas é do historiador inglês Peter Burke: "A função do historiador é lembrar a sociedade daquilo que ela quer esquecer". A segunda é do escritor inglês Gilbert Chesterton: "Não foi o mundo que piorou, as coberturas jornalísticas é que melhoraram muito"[2].
O que ambas as frases têm em comum? A clara definição de que o historiador e o jornalista têm a função de lidar com a realidade e mostrá-la, mesmo que muitas pessoas não queiram e não aceitem. Existem pessoas que não aceitam o Holocausto: o historiador mostra mesmo assim! Existem pessoas que não aceitam críticas a seu político favorito: o jornalista mostra mesmo assim! E poderíamos elencar aqui vários outros exemplos de fatos históricos ou realidades que historiadores e jornalistas, cada um com seus métodos, trazem a tona, discutem, analisam e, por isso, enfrentam resistências de quem prefere não enxergar realidades. Se o historiador analisa uma pandemia à luz de outros exemplos históricos para discutir formas de enfrentamento ou apontar o que pode ocorrer dali para frente, sempre haverá quem o chame de arauto do pessimismo e indigno que nada sabe; se o jornalista analisa um governo e o questiona em um debate para apontar falhas, sempre haverá quem o chame de arauto do pessimismo e indigno que nada sabe[3].
Obviamente, há historiadores e historiadores, assim como há jornalistas e jornalistas, de forma que não podemos colocar a todos no mesmo balaio (para o bem ou para o mal). No entanto, este texto se refere aos historiadores e jornalistas que realmente têm compromisso com suas atribuições profissionais, que não se deixam levar pelas paixões ideológicas[4] e usam o senso crítico para contribuir de modo a fazer as pessoas saírem da zona de conforto no que se refere a ideias e mentalidades. Tais profissionais têm muito a contribuir para a sociedade, na medida em que não a deixam esquecer o que deve ser refletido, o que deve ser corrigido, o que deve ser levado em conta nas práticas sociais com todos os seus aspectos (política, economia, cultura, etc). Aqui, podemos aplicar, por exemplo, a ideia de Chesterton mencionada no texto: a melhoria das coberturas jornalísticas passou a mostrar situações que outrora eram ignoradas ou mal noticiadas[5]; da mesma forma, podemos lembrar, a título de exemplo, dos historiadores que trazem a tona episódios ignorados, distorcidos ou que foram escritos sob apenas um ponto de vista[6].
Historiadores e jornalistas foram, são e sempre serão alvos de críticas e "demonizações". As críticas são saudáveis em ambientes democráticos (desde que feitas com civilidade e argumentos); as "demonizações" não são saudáveis em ambiente algum e devem ser combatidas com a mesma cultura de civilidade e argumentos que caracterizam as boas críticas em ambientes democráticos. Contextualizados nestas realidades das quais são alvos, os profissionais da História e do Jornalismo podem e devem prosseguir em seus trabalhos e métodos para "lembrar a sociedade daquilo que ela quer esquecer" (Burke) e noticiar, conforme a frase de Katharine Graham (nota 2), o que muitos querem suprimir.
[1] No meu caso, com aulas online.
[2] No mesmo sentido, podemos citar também uma frase do jornalista italiano Mino Carta: "Não vamos esmorecer na nossa crença de que jornalismo é algo que se faz com espírito crítico, fiscalizando o poder". Ou ainda, uma frase da jornalista norte-americana Katharine Graham: "Notícia é o que alguém quer suprimida. Tudo o mais é publicidade. O poder é definir a agenda. O que nós imprimimos e o que nós não imprimimos é muito importante."
[3] Nesta frase, estou sendo, propositalmente, elegante na forma de apontar como historiadores e jornalistas são tachados; uma rápida pesquisa em redes sociais, por exemplo, mostrará que o palavreado utilizado para se referir a historiadores e jornalistas não é tão elegante como o utilizado neste texto.
[4] O que não quer dizer que não possam ter lado. Porém, uma coisa é ter posicionamento político e ideológico; outra coisa é deixar que o posicionamento seja algo prejudicial à prática historiográfica ou jornalística.
[5] Podemos mencionar, para ilustrar isto, a cobertura da imprensa norte-americana na Guerra do Vietnã (1955-1975), que acabou levando a população dos EUA a retirar seu apoio ao governo no conflito, a partir do momento em que a cobertura jornalística passou a mostrar, em tempo real, as atrocidades cometidas naquela guerra.
[6] Para ilustrar isto, podemos mencionar as investigações que trouxeram às claras diversos crimes e atos corruptos cometidos pela ditadura militar no Brasil e que não eram mostrados durante o período ditatorial; ou ainda, podemos mencionar os trabalhos de pesquisa que têm lançado novas luzes às histórias de muitos povos indígenas, antes negligenciados, distorcidos ou relatados apenas pelo ponto de vista dos colonizadores.
FONTE DA IMAGEM: https://www.docsity.com/pt/o-papel-social-do-historiador/4963573/