REFLEXÕES SOBRE HISTORIADORES E JORNALISTAS

08/05/2020 23:14

Quando se está em isolamento social, mesmo trabalhando em casa[1], acaba-se tendo uma flexibilidade de tempo que permite mais aprofundamento em leituras, estudos e reflexões que, em outros contextos, não dariam para ser feitos. Neste sentido, acompanhar as notícias sobre a pandemia e, ao mesmo tempo, o desenrolar da política brasileira, além de ler e estudar diversos temas históricos e historiográficos (seja para o preparo de aulas ou para outras produções), oferece algumas possibilidades de perceber aproximações entre o trabalho do jornalista e o trabalho do historiador. Claramente, são profissões com métodos diferentes, linguajares próprios e características técnicas peculiares a cada área, mas, ainda assim, alguns pontos podem ser analisados como aproximações e semelhanças entre a História e o Jornalismo. E para refletir sobre isto, vamos partir de duas frases. A primeira delas é do historiador inglês Peter Burke: "A função do historiador é lembrar a sociedade daquilo que ela quer esquecer". A segunda é do escritor inglês Gilbert Chesterton: "Não foi o mundo que piorou, as coberturas jornalísticas é que melhoraram muito"[2].

O que ambas as frases têm em comum? A clara definição de que o historiador e o jornalista têm a função de lidar com a realidade e mostrá-la, mesmo que muitas pessoas não queiram e não aceitem. Existem pessoas que não aceitam o Holocausto: o historiador mostra mesmo assim! Existem pessoas que não aceitam críticas a seu político favorito: o jornalista mostra mesmo assim! E poderíamos elencar aqui vários outros exemplos de fatos históricos ou realidades que historiadores e jornalistas, cada um com seus métodos, trazem a tona, discutem, analisam e, por isso, enfrentam resistências de quem prefere não enxergar realidades. Se o historiador analisa uma pandemia à luz de outros exemplos históricos para discutir formas de enfrentamento ou apontar o que pode ocorrer dali para frente, sempre haverá quem o chame de arauto do pessimismo e indigno que nada sabe; se o jornalista analisa um governo e o questiona em um debate para apontar falhas, sempre haverá quem o chame de arauto do pessimismo e indigno que nada sabe[3].

Obviamente, há historiadores e historiadores, assim como há jornalistas e jornalistas, de forma que não podemos colocar a todos no mesmo balaio (para o bem ou para o mal). No entanto, este texto se refere aos historiadores e jornalistas que realmente têm compromisso com suas atribuições profissionais, que não se deixam levar pelas paixões ideológicas[4] e usam o senso crítico para contribuir de modo a fazer as pessoas saírem da zona de conforto no que se refere a ideias e mentalidades. Tais profissionais têm muito a contribuir para a sociedade, na medida em que não a deixam esquecer o que deve ser refletido, o que deve ser corrigido, o que deve ser levado em conta nas práticas sociais com todos os seus aspectos (política, economia, cultura, etc). Aqui, podemos aplicar, por exemplo, a ideia de Chesterton mencionada no texto: a melhoria das coberturas jornalísticas passou a mostrar situações que outrora eram ignoradas ou mal noticiadas[5]; da mesma forma, podemos lembrar, a título de exemplo, dos historiadores que trazem a tona episódios ignorados, distorcidos ou que foram escritos sob apenas um ponto de vista[6].

Historiadores e jornalistas foram, são e sempre serão alvos de críticas e "demonizações". As críticas são saudáveis em ambientes democráticos (desde que feitas com civilidade e argumentos); as "demonizações" não são saudáveis em ambiente algum e devem ser combatidas com a mesma cultura de civilidade e argumentos que caracterizam as boas críticas em ambientes democráticos. Contextualizados nestas realidades das quais são alvos, os profissionais da História e do Jornalismo podem e devem prosseguir em seus trabalhos e métodos para "lembrar a sociedade daquilo que ela quer esquecer" (Burke) e noticiar, conforme a frase de Katharine Graham (nota 2), o que muitos querem suprimir.



[1] No meu caso, com aulas online.

 

[2] No mesmo sentido, podemos citar também uma frase do jornalista italiano Mino Carta: "Não vamos esmorecer na nossa crença de que jornalismo é algo que se faz com espírito crítico, fiscalizando o poder". Ou ainda, uma frase da jornalista norte-americana Katharine Graham: "Notícia é o que alguém quer suprimida. Tudo o mais é publicidade. O poder é definir a agenda. O que nós imprimimos e o que nós não imprimimos é muito importante."

 

[3] Nesta frase, estou sendo, propositalmente, elegante na forma de apontar como historiadores e jornalistas são tachados; uma rápida pesquisa em redes sociais, por exemplo, mostrará que o palavreado utilizado para se referir a historiadores e jornalistas não é tão elegante como o utilizado neste texto.

 

[4] O que não quer dizer que não possam ter lado. Porém, uma coisa é ter posicionamento político e ideológico; outra coisa é deixar que o posicionamento seja algo prejudicial à prática historiográfica ou jornalística.

 

[5] Podemos mencionar, para ilustrar isto, a cobertura da imprensa norte-americana na Guerra do Vietnã (1955-1975), que acabou levando a população dos EUA a retirar seu apoio ao governo no conflito, a partir do momento em que a cobertura jornalística passou a mostrar, em tempo real, as atrocidades cometidas naquela guerra.

 

[6] Para ilustrar isto, podemos mencionar as investigações que trouxeram às claras diversos crimes e atos corruptos cometidos pela ditadura militar no Brasil e que não eram mostrados durante o período ditatorial; ou ainda, podemos mencionar os trabalhos de pesquisa que têm lançado novas luzes às histórias de muitos povos indígenas, antes negligenciados, distorcidos ou relatados apenas pelo ponto de vista dos colonizadores.

 

O papel social do historiador - Docsity

FONTE DA IMAGEM: https://www.docsity.com/pt/o-papel-social-do-historiador/4963573/

 

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