Uma análise sobre bases ideológicas do nazismo

10/05/2020 01:00

De tempos em tempos (e, ultimamente, com maior frequência), a internet se vê às voltas com uma intensa discussão nas redes sociais: o nazismo é de direita ou é de esquerda? Aqui, utiliza-se o adjetivo "intensa" para se referir, principalmente, a duas características recorrentes nesta discussão em redes sociais: a intensidade do número de mensagens e comentários que se trocam sobre isto e a intensidade do vazio de veracidade e argumentos que, muitas vezes, permeiam esta discussão. Ao lado de argumentações bem embasadas, tem-se muitas argumentações baseadas em achismos, teorias conspiratórias, fontes duvidosas, ataques ad hominem, etc. Este breve texto visa contribuir com as argumentações bem embasadas, propondo-se a levar a um debate saudável e civilizado, como deve ser em ambientes democráticos.

Em primeiro lugar, consideremos o seguinte texto:

 

Olga morreu em um campo de concentração nazista, após ter sido deportada do Brasil, no governo Vargas. Por ironia do destino, sua vida teve fim pela crueldade de um regime tão bárbaro quanto aquele para o qual tanto se dedicou. Viveu para servir à extrema esquerda e morreu sob o tacão da extrema direita. (USTRA, 2007, p. 46; grifo nosso)

 

O texto é de Carlos Alberto Brilhante Ustra (1932-2015), coronel acusado de torturas durante o período da ditadura militar e cuja memória é reverenciada por setores ligados aos militares, à direita e ao conservadorismo, muitos dos quais afirmam que o nazismo era de esquerda[1]. A questão, aqui posta, refere-se ao fato de que uma figura, reverenciada por pessoas dos mencionados setores, afirma claramente que o nazismo era de direita, enquanto muitos dos que o reverenciam afirmam ser o nazismo ligado a esquerda. Isto mostra indícios de divisão de opiniões, mesmo dentro de setores militaristas, direitistas e conservadores.

Para além desta divisão, há que se perguntar: o nazismo era de direita ou de esquerda? Ou ainda, para não cairmos em pensamento binário ou reducionista: que outras vias podem ser pensadas para compreender as bases de ideias do nazismo? Neste sentido, este breve texto quer contribuir para o debate apontando a via abordada por Yuval Noah Harari, em seu livro Homo Deus (2016).

Neste livro, ao abordar as grandes revoluções na história e seus impactos sobre a humanidade, Harari (p. 105) afirma que

 

Enquanto a Revolução Agrícola deu origem às religiões teístas, a Revolução Científica fez nascerem as religiões humanistas, nas quais humanos substituem deuses. Os teístas cultuam theos (“deus”, em grego), e os humanistas cultuam humanos. A ideia fundamental das religiões humanistas, como o liberalismo, o comunismo e o nazismo, é que o Homo sapiens tem uma essência única e sagrada, fonte de todo o sentido e de toda a autoridade no Universo. Tudo o que acontece no cosmo é considerado bom ou mau de acordo com o impacto que exerce sobre o Homo sapiens.

 

O primeiro ponto que chama a atenção é o fato de que Harari considera o liberalismo, o comunismo e o nazismo como religiões. Ele próprio, em Homo Deus, faz uma reflexão sobre o que é religião e elabora uma definição do termo (p. 188-189):

 

A maior parte dos mal-entendidos que envolvem ciência e religião resulta de definições equivocadas de religião. Muito frequentemente as pessoas confundem religião com superstição, espiritualidade, crença em forças sobrenaturais ou em deuses. Religião não é nada disso. Religião não pode ser igualada a superstição, porque as pessoas provavelmente não chamam suas crenças mais acalentadas de “superstição”. Nós sempre acreditamos “na verdade”, só os outros é que acreditam em superstições. [...]

Definir religião como “crença em deuses” também é problemático. Tendemos a dizer que uma cristã devota é religiosa porque acredita em Deus, enquanto um comunista ardente não é religioso porque o comunismo não tem deuses. Entretanto, a religião é criada por humanos, e não por deuses, e é definida por sua função social, e não pela existência de deidades. Religião é qualquer coisa que confira legitimidade sobre-humana a estruturas sociais humanas. A religião legitima normas e valores humanos ao alegar que eles refletem leis sobre-humanas. [...] Um judeu devoto diria que esse é o sistema de leis morais criado por Deus e revelado na Bíblia. Um hindu diria que Brahma, Vishnu e Shiva criaram as leis, reveladas a nós humanos nos Vedas. Outras religiões, do budismo ao taoismo, comunismo, nazismo e liberalismo, alegam que as chamadas leis sobre-humanas são leis naturais, e não criação deste ou daquele deus. Evidentemente, cada uma acredita em um diferente conjunto de leis naturais, descobertas e reveladas por diferentes videntes e profetas, de Buda e Lao-tsé a Marx e Hitler.

 

Apesar da citação acima ser extensa, fez-se necessária para que possamos perceber a complexidade e amplitude conferidas por Harari ao termo "religião". A partir disto, voltamos à primeira citação feita para atentar a duas características da abordagem de Harari: a primeira, já mencionada aqui, confere o caráter de "religião" ao liberalismo, ao comunismo e ao nazismo[2]; a segunda característica é a distinção que o autor faz ao mencionar, separadamente e em igual patamar, os três conjuntos de ideias, sem associar o nazismo nem ao liberalismo (uma das bases - porém, não unânime - do que chamamos de "direita") e nem ao comunismo (uma das bases - porém, não unânime - do que chamamos de "esquerda"). Com isto, afirmamos que, para Yuval Harari, o nazismo era uma terceira via ou uma terceira alternativa no campo político.

Outro ponto a ser analisado é a ligação que Harari faz entre o nazismo e o humanismo (segundo Harari, a ideia de que o homem "tem uma essência única e sagrada"), colocando aquele como derivado deste (também o liberalismo e o comunismo seriam derivados do humanismo). Sobre isto, o livro Homo Deus dedica um amplo espaço (p. 253-262) para analisar as divisões que o pensamento humanista sofreu ao longo de sua História (o que Harari intitula de "cisma humanista").

Para Harari, o humanismo se dividiu em três ramos com ideias distintas:

1º - "todo ser humano é um indivíduo único" (p. 253) e sua individualidade lhe confere o direito de ter a máxima liberdade e de ter a garantia de que a liberdade individual terá mais peso do que o Estado e as doutrinas religiosas. Este ramo é o que chamamos de liberalismo[3].

2º - "a experiência humana é a fonte de todo significado, mas há bilhões de pessoas no mundo, e todas têm o mesmo valor que eu" (p. 257), o que deveria levar o indivíduo a parar de pensar em si e ter um olhar mais atento às experiências coletivas, unindo-se ao corpo social para que, juntos, alcancem a harmonia da sociedade. Este ramo é o que chamamos de socialismo e comunismo[4].

3º - "Alguns humanos simplesmente são superiores a outros, e, quando experiências humanas colidem, os humanos mais aptos devem prevalecer sobre quaisquer outros" (p. 259), sendo esta uma ideia com base na teoria evolutiva darwiniana, que incentiva o conflito entre humanos como um caminho para que a humanidade seja mais forte e mais apta. Este ramo deu origem ao que chamamos de nazismo.

Trilhando a abordagem de Yuval Harari, temos, portanto, que o nazismo bebe das ideias humanistas (a valorização do ser humano e a consideração de sua importância no universo), ao mesmo tempo em que se distingue de outros ramos humanistas (liberalismo e socialismo). O próprio Adolf Hitler, em sua obra Minha luta, faz questão de se distinguir dos ideais liberais e socialistas, associando-os aos judeus e aos perigos, segundo Hitler, representados pela democracia liberal e pela luta de classes, que seriam fatores de divisão social.

Não podemos deixar de lado outras abordagens sobre as bases ideológicas do nazismo (aqueles que, por exemplo, veem características liberais ou socialistas no ideário nazista). A abordagem feita neste texto pretende, justamente, agregar variadas possibilidades de análise às demais discussões. Estas variadas possibilidades incluem a divisão de opiniões dentro de grupos ideológicos (como exemplificamos ao citar um trecho de Carlos Ustra) e a ligação do nazismo com os princípios humanistas (conforme a análise de Yuval Harari). Com tudo isto, possamos ter debates que, mesmo na diversidade de argumentos, tenham estes em bases mais sólidas de pesquisa, estudo e análise.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

HARARI, Yuval Noah. Homo Deus: uma breve história do amanhã. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. Tradução de Paulo Geiger.

 

USTRA, Carlos Alberto Brilhante. A verdade sufocada. Brasília: Editora Ser, 2007. 3ª edição.



[2] A associação de ideias humanistas à categoria de religião não é nova; lembremos, por exemplo, de Augusto Comte e sua "religião da humanidade", criada na década de 1850, propondo a substituição da teologia e da metafísica pela afirmação do ser humano como um ser prático, afetivo e racional.

 

[3] Com o passar do tempo, o liberalismo assumiu diversos matizes: temos, ao longo da história, por exemplo, quem defenda o liberalismo na política e na economia, mesmo sendo conservador no campo dos costumes (portanto, sem se dissociar de doutrinas religiosas).

 

[4] Este ramo, com o passar do tempo, também ganhou diversos matizes, inspirando interpretações e experiências históricas diversificadas (leninismo, maoísmo, etc).

 

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Foto da cidade de Colônia (Alemanha), após bombardeios na Segunda Guerra Mundial

FONTE DA IMAGEM: https://culturaeviagem.wordpress.com/2015/05/09/70-anos-do-fim-da-2a-guerra-mundial-as-cidades-alemas-destruidas-pelos-bombardeios-imagens-fortes/

 

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