Utopias - parte 2 - A ingratidão é necessária

26/03/2016 17:45

No texto introdutório da série "Utopias", vimos que política é algo discutível, ao contrário do dito popular que diz que política "não se discute". E assentado nesta premissa de que política é discutível, vamos trocar ideias sobre a ingratidão tão necessária para que a política se transforme em algo realmente a serviço de toda a sociedade.

Nas últimas brigas e rinhas por causa da política brasileira atual, é muito comum ver pessoas dizendo que defendem tal político ou tal partido porque, no poder, tal político ou tal partido fez bem ao povo (e, dependendo do político ou do partido, há quem diga que foi o que mais fez pelo povo em toda a história brasileira). Não vamos entrar no mérito da questão, pois o objetivo deste texto não é discutir se realmente tal político ou tal partido fez bem ao povo, mas vamos nos centrar na mentalidade que há por trás de defesas embasadas no argumento de que o governante fez coisas boas à sociedade. A mentalidade por trás de tais argumentos é de "gratidão" ao político, e tal sentimento chega a fazer com que pessoas deixem de perceber ou discutir os "maus feitos" deste político, fortalecendo assim a famosa frase de Ademar Pereira de Barros (ex-governador de São Paulo): "Roubo, mas faço". A frase nada mais é do que um resumo da cultura política brasileira, que espolia o povo e não lhe oferece condições para pleno desenvolvimento a médio e longo prazo, mas que oferece ao povo soluções de curto prazo para dar a ideia de que algo está sendo feito e assim despertar a gratidão que santifica políticos e cega diante dos maus feitos.

Sobre o que foi dito acima, há dois grandes exemplos na história política nacional: Vargas e Lula. Getúlio Vargas deu golpe duas vezes (1930 e 1937), governou de forma ditatorial (1937-1945), cerceou liberdades, censurou a imprensa, mas é reverenciado por causa da Consolidação das Leis do Trabalho e do impulso à indústria brasileira; Luís Inácio Lula da Silva vem sendo alvo de várias denúncias e tem seu nome ligado a maus feitos que estão sendo investigados com a Operação Lava Jato, mas é reverenciado por causa de programas sociais e impulsos ao desenvolvimento da economia brasileira. Tanto em um como no outro caso, há um sentimento de gratidão tão grande que bloqueia as possibilidades de discussão séria e sóbria a respeito de aspectos negativos destas duas figuras históricas, não para demonizá-los (como muitos opositores acabam fazendo), mas para que não continuemos com uma cultura que "santifica" personalidades históricas e cria "auras mitológicas" em torno delas.

Diante de todo o exposto, o que se quer afirmar aqui é que a ingratidão é altamente necessária para que se possa haver um debate político capaz de analisar todos os lados sem "canonizações", sem cultos à personalidade do líder, mas também sem animosidades, sem "demonizações", sem contaminações do debate com anseios e paixões que margeiam a loucura. E esta ingratidão, que não é má quando se refere ao campo político, só despertará no coração e na mentalidade quando as pessoas passarem a perceber que tudo o que um político faz de bom não passa de obrigação. A Consolidação das Leis do Trabalho (Getúlio Vargas), o desenvolvimento da indústria automobilística (JK), a criação e consolidação do Plano Real (Itamar/FHC), a extensão dos programas sociais (Lula), entre outras ações, nada mais são do que OBRIGAÇÕES dos governantes perante as necessidades dos trabalhadores, da economia, dos mais pobres e de toda a sociedade brasileira. Saindo da esfera federal, qualquer "boa ação" de qualquer prefeito ou vereador em qualquer recanto do Brasil nada mais é do que OBRIGAÇÃO do representante do povo. E quando falamos de política, para obrigação não cabe gratidão!

Se não houvesse gratidão a políticos, encararíamos como naturais as investigações em torno do político que fez bem à sociedade mas que acabou se envolvendo em "maus feitos". Se não houvesse gratidão a políticos, discutiríamos o atual cenário brasileiro com menos animosidade e mais racionalidade, cobrando de nossa classe política que cumpra suas obrigações frente aqueles que o ajudaram a estar no poder (os eleitores, não as empresas, empreiteiras, etc). Se não houvesse gratidão a políticos, as investigações poderiam ser mais imparciais e menos seletivas.

Voltando a tecla da ingratidão, esta é necessária na cultura política para que os políticos saibam seu lugar. Se o político (mesmo aquele que cumpre suas obrigações) se sente pressionado por aqueles que dele esperam o cumprimento do que se propôs a fazer, tal político pensaria mais vezes antes de se envolver com "maus feitos". E para que isto ocorra, é necessário que o povo aprenda a cobrar políticos, não batendo panelas (de forma seletiva) nem exigindo que uma só pessoa saia do poder e pague pelos maus feitos de toda uma classe política, mas pressionando para que os políticos cumpram suas obrigações, pois o político, por melhor que seja e por mais que cumpra o que é obrigado a fazer, deve ser investigado e passar pelo crivo da Justiça quando há evidências de seus atos corruptos.

No próximo texto, vamos trocar algumas "figurinhas" sobre o uso indiscriminado que fazem da História como forma de legitimar discursos e ideias. São notórios usos de expressões como "Vai estudar História" quando a outra pessoa discorda do que pensamos e dizemos. Refletir sobre estes usos (e manipulações) da História é um ato necessário para que a História não se vulgarize nas bocas e mentes de quem trata política como se fosse torcida de futebol.

 

Licença Creative Commons
 

Pesquisar no site

Contato

Intimidade com a História