Você realmente defende a família tradicional?

18/10/2016 15:35

As organizações familiares vem se diversificando ao longo do tempo, mas ainda assim há quem levante a bandeira da "família tradicional". No entanto, é importante se questionar: o que é a família tradicional e quem a compõe?

Este questionamento pode ser iniciado a partir de um livro de cunho educacional e religioso. Na obra "Mitos da Educação Adventista", George Knight (2010), ao abordar as transformações na educação e nos arranjos familiares, questiona aqueles que defendem o modelo de pai, mãe e filhos como sendo a família tradicional, e para justificar este questionamento ele coloca como contraponto a organização familiar anterior a Revolução Industrial, quando normalmente vários parentes viviam sob o mesmo teto (pai, mãe, filhos, sogra, primos, "agregados", etc).

Este breve texto não intenciona questionar a ideia de família defendida como sendo a "tradicional", mas repete e estende o questionamento: para você, o que é a família tradicional? Uma simples análise da configuração familiar predominante antes da Revolução Industrial, em comparação com a atual configuração defendida como "família tradicional", nos leva a concluir que a ideia de família é uma construção social, ou seja, as formas de organização familiar podem mudar conforme a época, a situação econômica, a cultura de cada grupo social, etc. Assim, o uso da expressão "família tradicional" fica um pouco esvaziado ao se referir a um modelo que ficou predominante na cultura ocidental somente após a Revolução Industrial.

Brabo (2006) afirma que, antes da Revolução Industrial, "casas e famílias eram empreendimentos 'abertos'", ou seja, não havia o ideal de privacidade que protege o núcleo familiar (pai, mãe e filhos) do mundo "externo". Além disso, o próprio arranjo familiar não tinha o núcleo como referência, mas comportava avós, primos, empregados, etc., e a organização familiar tendia a girar em torno do ofício exercido pelo chefe da família, segundo atesta Ariès (1986, p. 196) ao falar da organização familiar medieval. Este arranjo sobrevive até o século XVIII e passa a sofrer maiores transformações a partir da Revolução Industrial, quando a nova organização da produção faz os chefes de família terem de buscar melhores oportunidades nas fábricas e a privacidade tende a ganhar relevância como sendo o "refúgio" do trabalhador que esteve fora de casa o dia todo.

Neste momento, a mulher, no papel de mãe, torna-se cada vez mais a "dona de casa" que deve educar os filhos; até então, os filhos eram educados também pelo pai, visto que este muitas vezes trabalhava em casa, e/ou pelos parentes. Ariès (1986, p. 226), ao citar a educação em sociedades não-latinas (a inglesa, por exemplo), aponta que crianças normalmente não criavam laços afetivos com seus pais por serem entregues a parentes que os educariam profissionalmente. Esta situação muda, segundo Araújo (2002, p. 100-101), entre os séculos XVI e XVIII, quando, aos poucos e a partir das classes mais abastadas, se vai desenvolvendo o sentimento familiar em torno do modelo "pai - mãe - filhos", ao mesmo tempo em que também se valorizam os desejos de intimidade e privacidade.

Com a Revolução Industrial, a família passa a ser dividida no cotidiano: o pai trabalhando fora de casa, a mãe em casa e o filho na escola, segundo Santana, Oliveira e Meira (2013). Já Rocha, Cury e Rocha (2015, p. 244-245) destacam outro ponto de vista: os casos em que mulheres e crianças também passam a ir para as fábricas na medida em que a pobreza exige o trabalho de todos os membros da família para a sobrevivência. Seja qual for o ponto de vista a ser apontado, o fato é que divide-se mais intensamente a vida pública da vida privada ou o "mundo produtivo" do "mundo doméstico" (lembrando que, anteriormente, a casa era também o espaço de trabalho do chefe de família, dos seus filhos e parentes). Aqui temos a redução da família até termos apenas o núcleo; segundo Santana, Oliveira e Meira (2013), "esta nova organização da casa na modernidade e a modificação dos costumes e relações afetivas proporcionaram uma maior intimidade a esta 'nova família' composta por pais e filhos, não incluindo mais os amigos, clientes e criados". Portanto, somente com as transformações advindas da Revolução Industrial é que temos a predominância do modelo familiar chamado de "tradicional" atualmente.

O modelo de família baseado na organização "pai - mãe - filhos" é chamado de "tradicional" especialmente por religiosos e conservadores, e vem sendo defendido em nosso país por grupos ligados a eles e políticos que representam estes grupos (Campos, 2016), inclusive com a inserção, no projeto de lei que propõe o Estatuto da Família (Ferreira, 2013), do conceito de família como sendo a "união entre um homem e uma mulher". No entanto, aqui cabe uma questão: o que os defensores da ideia de "família tradicional" entendem por "tradicional"? Aliás, o que é "tradicional"?

Silva e Silva (2006), ao analisarem os conceitos de "tradição", citam Weber ao afirmarem que as tradições "são atitudes que os indivíduos tomam em sociedade e são orientadas pelo hábito, pela noção de que sempre foi assim". Se tomarmos apenas esta ideia weberiana abordada por Silva e Silva, já poderíamos dizer que o termo "tradicional" não se aplicaria ao modelo familiar defendido por conservadores e religiosos, a partir da constatação de que o modelo "pai - mãe - filhos" nem sempre foi vivenciado como é defendido como ideal para os dias atuais. Vimos que este modelo é bastante recente, ainda mais se o colocarmos diante de toda a caminhada histórica da humanidade. No entanto, Silva e Silva também mencionam Dominique Wolton para citar sua ideia de que a tradição também pode ser aprendizagem ou reapropriação, isto é, as tradições podem evoluir e se transformar de acordo com o surgimento de novas necessidades sociais. Partindo desta ideia, ainda assim teríamos dúvidas em utilizar o nome "tradicional" para o modelo "pai - mãe - filhos", visto que não foi o modelo familiar em si que se transformou, mas o que houve foi um arranjo familiar (o que é chamado de "tradicional") se sobrepondo a outro que até então era predominante (parentes e empregados vivendo juntos e praticando ofícios comuns em uma grande proximidade da vida privada com a pública).

Considerando todo o exposto até aqui, pode-se falar, então, em uma mudança na forma de se nomear o modelo familiar defendido por religiosos e conservadores, substituindo a expressão "família tradicional" por "família nuclear". Esta ideia de família nuclear é explorada e abordada normalmente considerando seu conceito como sendo a organização da família baseada em um núcleo que envolve o pai, a mãe e os filhos (Encyclopaedia Britannica, s/d). Azevedo (1947) vai mais longe e define a família como "núcleo miniatura da sociedade", ou seja, ela carrega em seu núcleo (pai - mãe - filhos) os valores e princípios que devem ser também os da sociedade.

Portanto, o discurso da defesa de uma "família nuclear" seria, para religiosos e conservadores, mais acertado do que a defesa de uma "família tradicional", considerando que esta expressão não se aplica ao modelo nuclear, visto que nem sempre foi o predominante na "sociedade cristã europeia ocidental pré-industrial" (assim como em outras sociedades ao redor do mundo e ao longo da História).

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

ARAÚJO, Cláudia Valéria Furtado de Oliveira. Pai, mãe e filho - reflexões sobre família e educação na modernidade. Revista Estilos da Clínica, vol. 7, nº 12, 2002, p. 100-111. Disponível em: <https://www.revistas.usp.br/estic/article/viewFile/61123/64123> Acesso em: 15 out.2016.

 

ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Trad. Dora Flaksman. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986. 2ª ed.

 

AZEVEDO, Aldo M. Por que eu não sou comunista? Revista Serviço Social, ano VII, nº 44, São Paulo, 1947.

 

BRABO, Paulo. A família entrincheirada e a invenção da privacidade. Disponível em: <https://www.baciadasalmas.com/a-familia-entrincheirada-e-a-invencao-da-privacidade/> Acesso em: 16 out.2016. Publicado em: 22 mar.2006.

 

____________. A família pré-industrial. Disponível em: <https://www.baciadasalmas.com/a-conturbada-historia-da-familia/> Acesso em: 14.out.2016. Publicado em: 01 fev.2006.

 

CAMPOS, Ana Maria. "Família é pai, mãe e filhos", diz Sandra Faraj (SD), entrevistada do CB. Poder. Disponível em: <https://blogs.correiobraziliense.com.br/cbpoder/familia-e-pai-mae-e-filhos-diz-sandra-faraj-sd-entrevistada-do-cb-poder/> Acesso em: 16 out.2016. Publicado em: 04 jan.2016.

 

ENCYCLOPAEDIA BRITANNICA. Nuclear family. Disponível em: <https://global.britannica.com/topic/nuclear-family> Acesso em: 18 out.2016.

 

FERREIRA, Anderson. Projeto de Lei 6583/2013. Disponível em: <https://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1159761&filename=PL+6583/2013> Acesso em: 16 out.2016.

 

KNIGHT, George R. Mitos na educação adventista: um estudo interpretativo da educação nos escritos de Ellen G. White. Trad. Ana M. M. Schaffer e Fernanda C. de Andrade Souza. Engenheiro Coelho, SP: Unaspress- Imprensa Universitária Adventista, 2010.

 

MARIANO, Ana Beatriz Paraná. As mudanças no modelo familiar tradicional e o afeto como pilar de sustentação destas novas entidades familiares. Disponível em: <https://www.unibrasil.com.br/arquivos/direito/20092/ana-beatriz-parana-mariano.pdf> Acesso em: 16 out.2016.

 

ROCHA, Jamile Simão Cury Ferreira; CURY, Paulo José Simão; ROCHA, Rodrigo Ferreira. Breve ensaio sobre família: da Pré-História à contemporaneidade. Revista Jus Populis, n. 1, v. 1, jan/jun 2015, p. 243-268. Disponível em: <revistadigital.unibarretos.net/index.php/JusPopulis/article/download/46/47> Acesso em: 14 out.2016.

 

SANTANA, Vagner Caminhas; OLIVEIRA, Daniel Coelho de; MEIRA, Thiago Augusto Veloso. Novos arranjos familiares: uma breve análise. Revista Digital EFDeportes, Ano 17, nº 177, Buenos Aires, fev.2013. Disponível em: <https://www.efdeportes.com/efd177/novos-arranjos-familiares-uma-breve-analise.htm> Acesso em: 16 out.2016.

 

SILVA, Kalina Vanderlei; SILVA, Maciel Henrique. Dicionário de conceitos históricos. São Paulo: Contexto, 2006. Verbete "Tradição". Disponível em: <https://www.igtf.rs.gov.br/wp-content/uploads/2012/03/conceito_TRADI%C3%87%C3%83O.pdf> Acesso em: 16 out.2016.

 

 

 

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